O que era para ser uma ironia até certo ponto aceitável, como tentativa de não falar sobre a possibilidade de prisão em segunda instância por ação do Congresso, tornou-se uma proposta extemporânea do presidente do Senado, Davi Alcolumbre.
Encantado com o som de suas palavras, talvez supondo que se transformava em articulador político de relevo, Alcolumbre passou a levar a sério a própria ironia e anunciou que estava propondo para valer uma Constituinte para fazer as mudanças que o Congresso considerar necessárias.
A mudança da Constituição para permitir prisão após a condenação em segunda instância está causando turbulência no Congresso, explicitando até mesmo, por áudios vazados, temor por parte de parlamentares envolvidos em denúncias de corrupção.
O fato político que ganhou dimensão nas últimas horas não é uma nova Constituinte, por ser inviável juridicamente, mas a alteração da Constituição através de uma emenda, ou a mudança do Código de Processo Penal.
A tese de Constituinte levantada por Alcolumbre não encontra respaldo na própria Constituição, que não prevê essa possibilidade. Depois de promulgada, em 1988, ela poderia ter sido revisada pelo Congresso cinco anos depois, mas não o foi. A partir daí, não há como mudá-la sem a utilização de uma proposta de emenda constitucional (PEC) a ser aprovada pelo Congresso.
Como a exigência para uma emenda constitucional é grande — três quintos dos votos na Câmara e no Senado, em duas votações —, essa é a garantia que temos de que a Constituição não será alterada a qualquer momento. É claro que uma PEC poderia, em tese, revogar a Constituição e convocar uma Constituinte, mas uma decisão desse tipo só seria aceitável em caso de ruptura institucional, como aconteceu nos anos 1980, após o fim da ditadura militar, resultando na atual Constituição.
De outra maneira, o Supremo Tribunal Federal impediria a ação do Congresso ou do Executivo, porque estariam sendo revogadas diversas cláusulas pétreas que são o pilar do nosso sistema democrático.
A convocação de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política, que já foi proposta pelo PT em diversas ocasiões nos últimos anos, parecia ser uma saída para a efetivação de uma reforma que, de outra forma, jamais sairá de um Congresso em que o consenso é impossível para atender a todos os interesses instalados, com 33 partidos constituídos e mais 37 na fila de espera, agora mais um com o partido que o presidente Bolsonaro pretende criar.
Mas a proposta não foi para frente porque houve quem suspeitasse de que, no bojo dessa Constituinte, a base aliada do governo petista naquele momento tentaria aprovar não apenas a possibilidade de um terceiro mandato para Lula, mas também o reforço do poder do Executivo, como aconteceu na Venezuela de Chávez e na Bolívia de Evo Morales.
Na campanha presidencial do ano passado, o candidato petista Fernando Haddad voltou a propor uma Constituinte para temas exclusivos, como a reforma política. E avisou que a ideia era de Lula. Esse temor voltou ontem ao debate político através do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, que rechaçou a proposta de seu colega do Senado perguntando: “Vamos caminhar para o que Chávez fez? Foi por isso que a Venezuela chegou onde está”.
A irônica proposta do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, não sobrevive ao feriadão em Brasília, e na próxima semana ele terá pela frente uma votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado sobre prisão em segunda instância que provavelmente aprovará a proposta.
Há ainda outra PEC na Câmara, e propostas para mudança no Código de Processo Penal. O mais provável é que as emendas sejam unificadas. O que parecia improvável já começa a ser viável no Congresso que, segundo a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, teme a atuação de Lula fora da cadeia. Ou será que é o PT que teme nova prisão de Lula?
Decisão desse tipo só seria aceitável em caso de ruptura institucional, como nos anos 1980, ao fim da ditadura militar.