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A conquista do Brasil

 

Temos alimentado uma imagem do povo brasileiro que nunca correspondeu à realidade. A gente doce e cordial, de permanente bom humor, que olha a vida e o mundo como uma aventura divertida que só aos outros faz sofrer, foi uma criação de intelectuais do século XIX. Eles inventaram o entendimento desde o início, a paz fraterna entre indígenas e portugueses, consagrada pelo famoso e popular quadro de Pedro Américo sobre a Primeira Missa inaugural. Como foram os colaboradores de Pedro II que, por iniciativa e incentivo do imperador, mandaram destacar, na carta de Caminha, que “em se plantando, tudo dá”.

Esse núcleo forte da inteligência brasileira talvez estivesse disfarçando seu sentimento de culpa por trás do mito. Um mito por meio do qual saudou com ensaio, ficção e poesia a Abolição, uma farsa que mal mudou a vida dos escravizados, a República, um golpe de Estado dos senhores de terras, e a própria passagem progressista para o século XX, com a certeza de que, apesar da fome e da miséria, da extrema desigualdade social, o Brasil estava destinado a dar certo.

A prova disso, apesar de tudo, era a visível felicidade do povo traduzida no carnaval, no samba e no futebol. Vivemos o século XX com essa certeza. Em nome dela, estivemos indiferentes a golpes de Estado e ditaduras muitas vezes sanguinárias, não demos bola a intervenções urbanísticas autoritárias que derrubaram as moradias populares, a mudanças compulsórias de costumes alimentadas pelo soft power dos poderosos, ao aumento constante da desigualdade provocada por políticas econômicas que nunca levaram em consideração a existência e as necessidades do povo.

Entramos no século XXI ainda com esse espírito, mas já um tanto cansados. E, enquanto julgávamos que tudo isso se tornava claro demais, e alguma coisa teria que ser necessariamente feita por alguém (sei lá por quem), a síndrome só fazia crescer. Quando o presidente da Republica declara que o Brasil foi o país que lidou melhor com a pandemia, essa gripezinha que não aflige o bravo povo brasileiro que se ri da dor, ele não está só dando um jeito de justificar sua maldade, sua incompetência e seu delírio narcisista. O presidente também está falando em nome de uma multidão de cidadãos sofredores que pensa como ele.

Um dos mitos que alimentam com fartura a mistificação está nas mentiras sobre a natureza e o caráter de nossos indígenas, sobre seu encontro com a civilização ocidental e portuguesa. Quando o degredado João Ramalho, o primeiro branco a viver no Brasil, raspava os pelos do corpo europeu para se confundir com os índios de São Vicente, antes da “descoberta” de Cabral e do turismo renascentista de Américo Vespúcio, havia um certo respeito pelo outro, por aquilo que era diferente, seres humanos que viviam nus nas comunidades tupis. Nessa época, havia no Brasil cerca de 3 milhões de índios, que hoje não passam de uns 200 mil. O que aconteceu com os 2,8 milhões que sumiram?

Em seu livro “A conquista do Brasil”, Thales Guaracy, historiador e cientista social formado pela Universidade de São Paulo (USP), considerado por Laurentino Gomes como “dono de uma capacidade invejável de pesquisa”, diz que a travessia pelos portugueses do Mar Tenebroso, como era chamado o Oceano Atlântico, só ganhou importância para nós quando “o Brasil precisava construir para si um enredo histórico coerente com a dominação portuguesa da qual descendia sua coroa”. Ou seja, o papel de Pedro II nessa narrativa.

Mas “a verdadeira História do Brasil saiu da espada de guerreiros inclementes e sanguinários, da chibata dos mercadores de escravos, da rudeza de desbravadores belicosos e da ambição de nobres que encontraram, no ambiente inóspito do Novo Mundo, campo para enriquecer à margem da lei e do próprio mundo civilizado”. Como segue sendo até hoje. Como sempre foi. “Erradicar a pobreza e tornar o país não só democrático, como socialmente mais equilibrado e justo, é uma tarefa histórica numa nação acostumada desde sempre a massacrar a parte mais fraca e muitas vezes discriminada de sua sociedade”. Outras nações fizeram melhor do que nós.
O Globo, 14/12/2020