São múltiplas as atrações culturais de Amsterdã. Na última visita feita à capital da Holanda, além da beleza das suas pontes líricas, pude me encantar com a esplendorosa Sinagoga Portuguesa, com as suas luzes eternas, antes passando pelo Rembrandt Corner, bem perto da casa em que morou o maior pintor holandês do século 17, hoje transformada em museu.
Na Holanda protestante, Rembrandt, utilizando basicamente a água-forte, conseguiu verdadeiras obras-primas, como em A peça de cem florins. Pintores recorriam ao cobre para conseguir o que não alcançavam nas suas telas e coloridos. Assim surgiram admiráveis trabalhos sobre o céu incerto da Holanda, seus canais e costas ventiladas, seus velhos bosques de carvalho torcido e o mundo alegre dos pátios.
Ali ele criou algumas das suas maiores obras e pode-se reparar que o pintor holandês, que viveu entre 1606 e 1669, gostava de produzir obras de tamanho reduzido. Há uma genial escultura, à cuja frente fiquei por muitos minutos, em que dois judeus conversam. Sobre o que falavam? Não consegui chegar a nenhuma conclusão.
Rembrandt viveu na Holanda, sem ser judeu, numa perfeita harmonia com a comunidade israelita. Pintou uma grande quantidade de quadros com motivação semita, dos 600 que constituíram a sua obra imortal. Particularmente, debruçou-se com muito carinho sobre as luzes do Velho Testamento, tendo ao todo produzido 1.400 desenhos e 300 gravuras, com materiais hoje expostos em sua casa-museu. Preferia fazer auto-retratos, como os clássicos de 1629 e de 1658, este já com a fisionomia gorda e envelhecida, pois havia acabado de ir à bancarrota. Fez cerca de 100 auto-retratos. Comprou a casa sem ter recursos para pagar as prestações, sofrendo muito com isso. Mas ela foi preservada, num país que dá muita importância à sua memória.
Outro pormenor é que Rembrandt tinha especial predileção por gente simples do povo e cenas do cotidiano, que ele retratava de forma dramática. O seu estilo promovia fortes contrastes entre luzes e sombras, o que marcou a sua pintura impactante. Mas foi na interpretação da Bíblia que se sentiu a força do seu humanismo, a que foram agregadas outras manifestações, como paisagens, nus, retratos, cenas da vida, animais (e pássaros), além de temas mitológicos. Ele conseguiu, de forma inédita, penetrar nos sentimentos mais profundos dos seus retratados.
Mudou-se definitivamente para Amsterdã em 1632. Dois anos depois, casou-se com Saskia van Uylenburgh. Tiveram quatro filhos, mas somente um sobreviveu à infância. Foi colecionador de arte, mas, como comerciante, não alcançou sucesso. Viveu sob o signo da dificuldade financeira, o que, aliás, parece uma característica universal dos grandes pintores. Assim viveu os últimos anos de sua vida, sobretudo porque jamais cedeu ao gosto popular, como queriam alguns de seus habituais compradores.
Conheceu a total obscuridade, além de uma grande infelicidade quando, a partir de 1642, sua amada esposa Saskia perdeu a vida. A conservação da casa que visitei, adquirida em 1639, tornou-se extremamente dispendiosa (são três andares). Suas últimas pinturas bíblicas não foram feitas para satisfazer o público, mas seus impulsos interiores. As obras, assim, ganharam profundidade espiritual, mas, não sendo vendidas, levaram-no à falência. Perdeu a casa em 1657 e morreu um ano depois. Seu nome figura ao lado de Michelangelo, Rafael, Rubens e Ticiano. Por meio do claro-escuro expressou o mundo dos sentimentos.
Considerado o pintor por essência da Bíblia e do Evangelho, deixou como obras-primas: Jacob abençoando os filhos de José, Pilatos lavando as mãos, Abrahão e Isaac, além de uma impressionante coleção de Patriarcas, Anjos e Profetas que marcam a sua homenagem ao Velho Testamento. Rembrandt representou muito para a pintura universal, vivendo numa sociedade em que os judeus sefardim eram figuras destacadas.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 23/06/2004