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Como eles faziam sem?

 

Às vezes, quando quebra um aparelho ou me falta a internet, tenho, como todo mundo, aquela sensação de impotência diante de máquinas que não pedi para usar e sem as quais já não se pode passar. Mas, então, lembro-me de certas modernidades do passado e me pergunto como nossos maiores se viravam quando elas ainda não existiam.

Cleópatra (69-30 a.C.), por exemplo. Era uma vamp. Mas como isso era possível se o papel higiênico só foi inventado em 589 e a escova de dentes em 1498? Aliás, será que Camões (1524-80), Shakespeare (1574-1616) e Molière (1622-76) conseguiam mastigar direito se tudo indica que perderam cedo os dentes e as dentaduras postiças só surgiram em 1791?

Falando nisso, imagino as lancinantes dores de dentes sofridas no fragor das batalhas por Napoleão (1769-1821), o britânico Duque de Wellington (1769-1852) e o argentino San Martín (1778-1850), já que as brocas de dentista só apareceram em 1875. Da mesma forma, mal posso acreditar que Rafael (1483-1520), Tintoretto (1518-94) e Caravaggio (1571-1610) tenham pintado aquilo tudo à luz de velas ou lamparinas, porque até 1792 não havia iluminação a gás. E espero também que Vivaldi (1678-1741), Bach (1685-1750) e Mozart (1756-91) nunca tenham precisado se submeter a cirurgias, já que só houve anestesia (e, mesmo assim, com clorofórmio) em 1849.

Surdos famosos como Jonathan Swift (1667-1745), Goya (1746-1828) e Beethoven (1770-1829) tinham de usar aquele chifrinho enfiado à orelha porque o aparelhinho para surdez, movido a bateria, só viria em 1898. E as grandes divas do teatro do século 19, como a nossa Eugenia Camara (1837-74, paixão de Castro Alves), a francesa Sarah Bernhardt (1844-1923) e a italiana Eleonora Duse (1858-1924), pareciam não ter boca em cena porque, quando o batom foi inventado, em 1915, elas já tinham morrido ou se aposentado.

E, mesmo assim, todos foram quem foram.

Folha de São Paulo, 10/12/2023