Não, chega de baixo astral. Hoje não vou reclamar de nada, nem criticar o que quer que seja. Cansa um pouco, esse negócio de falar sempre em ladroagem, safadagem, malandragem e pilantragem, para não mencionar outros membros da numerosa e expressiva família Agem. Correndo o risco de desagradar algumas das minhas coroas da Ataulfo de Paiva – as meninas que sempre me exortam a descer o malho “neles” e me brandem sombrinhas quando eu não o faço – vou mudar de foco, nem que seja uma vezinha só. Antigamente até que dava e por que não dará agora? É só pegar os jornais, ligar a televisão ou o rádio e aguardar. Com boa vontade, aparece alguma coisa que não se enquadre nessas categorias.
Com boa vontade e também paciência, claro, tudo neste mundo requer paciência. Muita paciência, como descubro depois de algumas horas de trabalho. Paciência até que eu tenho, mas o problema é que há um prazo para entregar o que escrevo e, na minha idade, posso vir a sucumbir depois de oito horas de ver e ouvir as mesmas coisas nos noticiários. A família Agem não dá uma folga, vigorosamente coadjuvada pela também sempre presente família Ência – indecência, incompetência, negligência, delinquência, essa turma. Vieram para ficar e, quanto mais se fala em combatê-las, mais elas se apresentam fortes e cevadas.
Sim, a famosa realidade nacional não ajuda. Mas não será por isso que a intenção de não parecer rabujento e agourento se frustrará. Engrena-se uma primeira na boa vontade e logo se descortina todo um horizonte em que há motivos para alegria ou mesmo comemoração. Por exemplo, não é que o dia amanheceu de novo? Chegou meio enfarruscado, mas isso acontece e condiz com a estação. O importante é que compareceu no horário previsto e, por trás das nuvens escuras, o brilho e o calor do sol estão garantidos, pelo menos nos próximos oito minutos, que são mais ou menos o tempo que levam para chegar até a Terra. Se pensarmos um pouco, devemos render graças ao Criador, por não haver posto nas mãos dos homens o controle e gerenciamento desses fenômenos, do contrário já estaríamos pagando a taxa de iluminação natural e saberíamos de pelo menos um desvio fraudulento de energia solar, para fins escusos e maracutaias variadas. E não deixa de merecer exame a hipótese de que os dias excessivamente frios que temos experimentado podem estar sendo causados por um desvio desses. Tendo vivido aqui há mais tempo do que mereço, aprendi a acreditar em tudo.
No terraço, poucas notícias, mas, mesmo assim, dignas de menção. Depois de um período muito abatido, em que se chegou a temer por sua sobrevivência, o pau-brasil trocou de vaso e agora rebrota e se renova. Não posso evitar lembrar que, no país que leva seu nome, a renovação não parece muito próxima. Foi eleito um presidente que disse que ia mudar tudo, mas era brincadeirinha, os descontentes bem que podiam ter mais senso de humor. Diferentemente do pau-brasil, o País não trocou de vaso, que continua o mesmo. (Não escrevi “sanitário”, não venham me atribuir coisas que vocês pensaram). E vai continuar o mesmo, o que só reforça o consolo trazido pela arvorezinha. Penso vagamente em montar uma visitação paga ao pé de pau-brasil, com o chamariz “Finalmente, acredite se quiser, um brasil que se renova”. Há o receio de que isso seja visto como propaganda enganosa, mas acho, que, formando uma boa quadrilha, dá para faturar uns trocados. Faço uma anotação mental para procurar “formação de quadrilhas” na internet, não há de ser muito difícil, devemos ser o país que tem maior know-how no assunto.
No setor ornitológico, devo reportar à prolongada ausência de Herculano, o gavião que de vez em quando aparecia aqui para se exibir. Ficava empoleirado ali na quina da cerca, fazendo pose. Ninguém lhe regateava elogios, de forma que seu temperamento vaidoso devia estar contente, não havendo razão plausível para sua ausência. Isso me faz suspeitar que ou ele está foragido por não ter carteira de gavião pelo Ibama ou entrou para o Bolsa Família e não sai mais para caçar. Já os bem-te-vis continuam belos exemplos de brasilidade e cidadania. Ao contrário dos governantes, eles viram tudo e, se perguntados, confirmam. Infundem esperança, embora talvez se deva temer que venham a ser processados e presos, confirmando o moto que parece nos orientar, ou seja, “se alguém tem que ser preso neste País, que seja quem denuncia”.
E os beija-flores continuam beijando flores e assim mostrando que, sim, não há só flores que não se cheiram, há flores que se beijam. As abelhinhas silvestres continuam a dar o bom exemplo a nosso povo, trabalhando o tempo todo sem picar ninguém, até porque não têm ferrão. Os pinhões-roxos, encarregados da segurança da casa contra olho-grande, prosseguem no cumprimento de sua missão, com uma baixa ocasional ou outra, mas sempre eficazes.
E não há somente o terraço, é claro. Há também tudo o que está lá fora e pode ser visto sob uma ótica construtiva. Abro o portão do edifício e vejo uma pequena aglomeração próxima do restaurante da esquina. Teria sido ele assaltado, dentro da nova moda de assaltos a restaurantes? Examinei o ajuntamento à distância, crei coragem e me aproximei. Não era nada, coisa trivial do cotidiano, um pivete que havia tentado levar a bolsa de uma senhora, mas tivera que contentar-se com o relógio, aliás baratinho, uma imitação pirata de Rolex que custou apenas vinte e cinco reais. E ainda me contaram que o restaurante estava registrando mais um dia sem assalto. Deviam inaugurar uma placa, pensei eu, ponderando como basta mesmo ter boa vontade para ver como tudo está bem.
O Globo, 2/8/2009