Porto Alegre vem de acolher a reunião-monstro, de marco internacional, para discutir o direito à água como franquia do cidadão, e não expectativa e paga de um consumidor compulsório. A ocasião, em debate aberto pela Ministra Marina Silva, permitiu a análise mais funda, de até onde nos damos conta de que o mundo da globalização começa por se apossar do nosso inconsciente coletivo, e se impõe como uma lógica do pensamento. Tomamos, como nossos, interesses dominantes do mundo, que se transformam num estado do espírito, depois em imagem e, a seguir, no fato consumado de um comportamento social.
Necessitamos de fóruns seguidos, como o que nos empresta a capital gaúcha, para perceber essa estrutura hegemônica alucinante em que somos condenados ao pensamento uniforme, prisioneiros das submissões silenciosas de que estamos fazendo a nossa convivência internacional.
O exemplo de agora, da água deixando de ser direito de todos para se tornar uma necessidade provida e embalada desde as garrafas de água mineral, bem evidencia esse escamoteio, sutilíssimo, pelo qual cada vez mais a globalização nos rodeia dos simulacros dos desejos e das suas satisfações sintéticas. Focado agora sobre a água, Porto Alegre é cada vez mais sede internacional da alternativa e do dissenso, é o palco necessário para atentar-se à diferença neste mundo homogeneizado. E a começar pela própria construção do País de Lula, tal como sai hoje dos prognósticos do insucesso, ou da receita feita do velho Terceiro Mundo.
De saída, entretanto, mantemos a atenção, com olhos de ver, a garantir-se que o fórum alternativo nos promete, mas expõe-se aos rolos compressores da avalanche modernizadora imposta à cabeça e ao futuro. Mesmo porque os próprios lugares de dissenso se expõem a estandartização. E Davos - o encontro dos ricos - quer siderar a nossa nova bastilha de um outro cenário, à margem do Guaíba.
Acabaremos, para muitos, presos a um palácio de espelhos, que permite a deformação dos contrastes e desfoques de perspectiva. Há que divergir enquanto é tempo dentro do mundo global, e assentar, para todo o mundo em ruptura com a cúpula única, o cenário para percebê-lo e afirmá-lo. Especialmente agora quando a uniformidade hegemônica já está também se devorando pelo seu simulacro. Hollywood toma conta do porvir futuro americano, elegendo Schwarzenegger como governador da Califórnia. Vai ao poder um script de filme "B", empossando literalmente o exterminador do futuro.
Na Pindorama, entretanto, abrimos cada vez mais a silhueta da diferença, e a projetamos, nessas semanas, cada vez mais, lá fora. O que dissemos vigorosamente em Cancún marca uma nova identidade brasileira que pode dizer ao que veio no comércio exterior, depois de ter feito o dever de casa no ganho da confiança internacional. A queda ímpar do risco Brasil, só comparável ao primeiro trimestre de 98, brota quando Lula é visto como freio à discussão açodada da Alca, por exemplo, e seus vaticínios de lógica implícita, ao que seria o domínio pós-Iraque, nos termos vazados pela Presidência Bush.
Há todo um percurso lá fora para a imagem da independência brasileira, ganha na Europa, enquanto modorra nos Estados Unidos, atabalhoados agora pelo estorvo de Schwarzenegger ao que seja a volta a um bom senso no comando do mundo, e de uma verdadeira coexistência de visões diferentes de mudança e prioridades de bem-estar. O novo enfoque realista do Mercosul, seus limites mas também suas novas condições de barganha, só reforça esta nossa liderança emergente frente aos jogos feitos da Alca, ou do lugar das periferias, no tamborete em que as confina o domador hegemônico, e a bem de um novo descortino de cenários.
Aumenta o vigor da voz de Celso Amorim em palcos, por exemplo, como o da Organização Mundial de Comércio, colhendo o fruto da confiança nos círculos mais fechados da dita racionalidade, dos donos do globo, lograda por Palocci e Meirelles. E o incômodo americano começa, quando atenta a consistência do que diga Lula, já a anos luz do primeiro muxoxo americano, quando o ex-secretário do Tesouro impunha ao presidente eleito a tarefa de provar, de saída, que não era louco. Da mesma maneira, a Europa de após o impasse iraquiano, só faz reforçar a busca de um dissenso criador, ganho sobre o baixar da cortina hegemônica do após 11 de setembro, e afirmar também um pluralismo no enredo que nos ameaça. Esse mesmo que, na ponta de cá, já mostra que não será o de um sensaborão "segundo tempo", do formulário do neoliberalismo, de que não pôde se livrar o tucanato.
Aí está, diante inclusive das novas flexibilidades do FMI, o atentar-se às prioridades estratégicas do desenvolvimento social e do combate à marginalização coletiva, em que o programa "Fome Zero" ou a luta imediata e sistêmica contra o desemprego, cravaram uma agenda de reconhecimento e apoio. É por tais surpresas, rompidas do ninho e dos ovos que chocariam apenas a estabilização econômica do primeiro semestre, que a velha Europa procura no País de Lula o aponte da legítima alternativa ao déjà vu neoliberal, e sua prosperidade concentracionária.
Na boa receita do diferente, aí está a derrubada da Nação dos privilégios na reforma previdenciária; a disciplina de um verdadeiro novo pacto federativo na arrumação dos nossos tributos; a revisão das privatizações feitas a trocho e mocho, a revalorização do papel do Estado na retomada do desenvolvimento, ou o superar-se a política estrita das clientelas, na moção do Congresso Nacional. O rol dos sucessos já vai à conta da diferença que começa. E que tanto fará o caminho de um outro futuro quanto o encontro vindouro de Porto Alegre mostre para onde vai, saída dos sanatórios ideológicos da Escandinávia ou da Alemanha, uma esquerda que diga a que vem, depois de saber, e de vez, por onde começa o seu jogo.
Jornal do Commercio (RJ) 17/10/2003