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Comadre Janete

 

O tema tinha que ser cabeça. A última conversa que tive com Janete foi ler o seu prefácio para o livro de Odette Eid, Minhas cabeças. É um texto dialogal. Explícito na percepção e no bom gosto.


Janete tinha fixação com cabeças. Colecionava cabeças de pedra, pano, bronze, cerâmica, vidro, cabeças de todo jeito, como se quisesse multiplicar a sua própria privilegiada cabeça.


A cabeça de Janete era uma maravilha para criar e compreender, para amar e guardar. O processo inventivo das formas e das coalizões que nos legou vinha de sua cabeça que, para fazer, preparava-se antes para conhecer.


Que cabeça boa a da Janete.


Nesse prefácio fala das cabeças em formas minimalistas ou exuberantes, com expressão irônica, zombeteira, sedutora ou emburrada. Assim, fica à mostra a compreensão plural e a capacidade de sintetizar que soube exibir no acervo inigualável de suas obras, de suas conversas, de suas opiniões, de seu colecionismo lúcido.


Obras sobretudo no plano da arquitetura, da decoração de interiores e, não esqueçamos, de orientadora de talentos na área da arte popular. E de preservadora e divulgadora do fazer do povo.


Janete sabia distinguir orientação de imposição. Jamais sua cabeça atuaria na forma de conduzir o talento alheio. O que sabia fazer era adubar, vitalizar, enlaçar artistas.


O Brasil tem muito a agradecer por tudo que ela fez pela cultura. Disse isto numa breve alocução na missa da ressurreição, mandada celebrar por uma multidão de amigos, no Rio.


Falei pela Academia Brasileira de Letras que se enriqueceu com o seu contributo inteiramente gratuito. A ABL proclama-o com orgulho e saudade.


Mas, falei muito mais como compadre e freguês da sua mesa soberana nas gostosuras, infinita na largueza dos gestos de acolhimentos.


Janete era a minha cozinheira predileta, que ria sempre nas repetidas vezes em que, brincando, lhe declarava com todo carinho, ser ela melhor no fogão que na prancheta.


Janete não precisa de biografia, a sua biografia é asua obra múltipla, de estética e de cidadania. Está no horizonte imenso em que se projetou e no grão pequenino da mostarda, tempero dos seus pratos. Está em todos nós que choramos, saudosos dela. Está viva conosco, como me repete Maria do Carmo, fazendo presente versos de Celina de Holanda: "Não se morre ante aqueles/ que nos querem vivos".


Diário de Pernambuco (PE) 23/12/2008

Diário de Pernambuco (PE), 23/12/2008