Foi hoje, mas em 1964. Quando, na tela, Geraldo Del Rey se arrastava de joelhos e em tempo real com uma pedra de 20 quilos de verdade na cabeça, metade do cinema suspirava: "Rossellini!".
Quando Mauricio do Valle, de capa e chapéu no papel de Antonio das Mortes, disparava seu rifle e a cena se repetia em alta velocidade, a outra metade exclamava: "Eisenstein!". E, quando Othon Bastos, como Corisco, falava nos olhos do espectador, rodopiava e era metralhado gritando "Mais fortes são os poderes do povo!", a terceira metade se extasiava: "Godard!". Eu sei, não há três metades. Mas, nos filmes de Glauber Rocha, havia. Em "Deus e o Diabo na Terra do Sol", daquele ano, mais ainda.
Foi há incríveis 60 anos. Para a crítica brasileira, assistir a "Deus e o Diabo" pela primeira vez era uma epifania, uma revelação, a visão de um quasar. Nunca houvera nada parecido no Brasil, nem o lendário "Limite" (1930), de Mario Peixoto, que ninguém tinha visto, nem o recente (1963) "Vidas Secas", em que Nelson Pereira dos Santos trouxera Antonioni para a caatinga. "Deus e o Diabo" era a maturidade de um cinema que não tivera sequer uma adolescência. Com ele, passávamos direto da infância, das calças curtas e do nariz escorrendo, para a vida adulta, prontos a ser reconhecidos pelo Cahiers du Cinema.
E o Cahiers fazia a sua parte. Cada novo filme brasileiro era um acontecimento na revista. Glauber foi fotografado jogando pelada com Godard num terreno baldio em Paris. Nossos cineastas eram os xodós em Cannes, Berlim, Veneza. Alguns até namoraram as atrizes dos mestres europeus.
José Luiz de Magalhães Lins, dono do Banco Nacional, lhes oferecia dinheiro para filmar. Os exibidores nacionais tentavam enterrar seus filmes, lançando-os no Carnaval —em vão. A arte vencia o comércio. Era o Cinema Novo.