Na perfeição do silêncio entrado na madrugada, deparamos a face de José Paulo Moreira da Fonseca, já, de outra paz, as mãos transparentes e vigorosas postas em sossego, o poeta-artesão e o pintor do encaixe; do tom como da elisão do verso. Morria no Botafogo de toda a sua mocidade; da primeira turma da PUC, dos formados em Direito, saídos do Palacete Joppert, em São Clemente, dos jardins cuidadosos, pisados pela universidade que começava.
O bar do Cardoso, da primeira esquina, reunia esta quase meninada, do começo do debate do existencialismo; da lufada católica do neotomismo, de Maritain e do nosso Dr. Alceu; dos caminhos da fé de Bernanos ou Gabriel Marcel. José Paulo, de todos nós, tinha a casa mais próxima, à dos pais, Dr. Joaquim e D. Dulce.
Espalhava-se o atelier do pintor autodidata, os tubos de tinta e as pranchetas, de par com a literatura de Elliot, ou Valéry, ou Apollinaire, de que extraía uma primeira escrita, de contemplação coloquial do seu diutorno, que iria marcar a "geração de 45". "Elegia Diurna" foi o livro inaugural, trabalhado, do verso mostrado aos amigos, refeito, corrigido, buscado com a consciência de um recado de seu tempo. Vinheta e scherzo são palavras-chave, deste lavrar de dentro, da visão de José Paulo, atento ao ícone latente, seguro do desfecho rápido, que se seguiria ao instante afinal capturado, na longa vigília.
É uma fatura de transparência, que o poeta buscou na espátula do pintor, saído do cânone do primeiro retábulo, ou da primeira prise. Mas é o largo de um espírito ancorado, como uma bem-aventurança, nesta visão primeira, como nos tratados da ascese do imaginário do retiro inaciano. Esta pauta marcava a transfixação pela claridade, pela busca da primeira evidência, no verso que proclama mais que dita ou sugere.
Toda esta fidelidade ao primeiro clarão interno do real atravessa os mais de 60 anos de um labor de ofício, conquistado a todas as suas horas, no exemplo que deu, inclusive, à sua geração, de deixar a advocacia opulenta do Banco do Brasil para viver da coleta dos dias, do poema ou da tela, mão na mão, na absoluta impossibilidade de desfazer-se este enlace. Era o amálgama do artista binário, da pauta permanentemente reversível. A "Elegia Diurna" dá partida a uma trajetória, que nunca foge deste recado básico da transparência, e termina nas "Naturezas" da última exposição, há dois anos.
De entremeio, e no perene contraponto, é este ver de imediata evidência, que passa do verso às fachadas, enfeixando a proposta do pintor. Demarcam o seu espaço, no plano sempre abrangente, de onde se rasgam as portas entreabertas, a fresta de mar, o balcão e a toalha pendente, no reenvio exato de que se fazem as simetrias de brasões, ou o decantar agudo das vinhetas. São estas as suas obras que se encontram na Documenta de Kassel, como ícones da reverberação. Ou dos monocórdios, de uma disciplina de mais de meio século, encaixe do olho que trabalhava no mesmo espartilho do verso. Esses que mereceram repetidamente o "Jabuti", entre outros reconhecimentos, aqui e lá fora.
Entrecruza-se esta dação do ver, em que a transcendência se entrega à surpresa do cinzel dos autodidatas. E exige este silêncio da música, que José Paulo sabia, como poucos, trazer à regra de ouro, entre a escuta e o pano de fundo. Nesta devolução entre Mahler - e, claro, com o Adagueto da Quinta Sinfonia - e o Mozart de um naipe irresolvido, mas a empurrar sempre, como coreografia de base, o Wagner de "Tristão e Isolda".
A vida interior de José Paulo não tinha purga, nem compensação, mas um desvelamento, que chegou a um dos alteregos mais bem sucedidos, num País ainda preso às dolências dos diários ou das cartas na gaveta. Não há inéditos guardados de José Paulo, tanto todo se transportou ao "eu resolvido" de Alexandros Apolonios, que escapa ao mesmo tempo a "gramática jocosa" de Bakhtin, ou aos alter egos opulentos de Borges. Também não é o escorço de uma vida simploriamente passada a limpo. Mas o repente dos stacattos fugidos ao torpor de um cotidiano, no Apolonios, já adiante da réplica dos interlocutores, o humor como a trampa impaciente, para dizer, depois, o a que veio.
A forma do livro não é a de basde page, nem a do rondó da "voz da cabeça" nem, sobretudo, o da máxima pomposa dos moralistas, ou dos cínicos profissionais. Responde a um "ver de ver", da leveza imediata, em que as situações, ou os qüiproquós, ou os imbróglios se desfazem no ar, antes de se tornarem um déjà vu. É como a posta restante da vivência passada a limpo de José Paulo, neste excesso de vigília para o instante, ou da abundância da vinheta, que não foi ao verso mas tantas vezes se guardou na conversa com os amigos, como o rascunho sempre nítido da obra.
Tão óbvio como surpreendente, ainda, é a própria vida assumida por Alexandros Apolonios, que ruminou em José Paulo, sem qualquer concessão do primeiro olhar, e reclamou o segundo tomo uma trintena depois. É o último texto publicado, três anos antes de sua morte, como o mesmo senso de repartida. Revisitação com o mesmo aplomb, do desvão do bastidor, ou da demora de cenário ou de sua demasia, em que José Paulo, à margem da literatura cediça dos confessionários, das parábolas, dos textos de pseudônimo, excedeu-se em si mesmo, para além da sabedoria do voyeurismo, em decorticação da vida.
Alexandros Apolonios não tem parceiro, na galeria das personas criadas pela literatura brasileira. Liberou José Paulo para a plenitude de sua ambivalência sempre na acrobacia limpa, ou na nitidez dos arlequins, que distinguia tão bem nas impersonificações, malcitadas, que a nossa subcultura lança à conta da Commediadel Arte. Apolonios agora toma conta da vida de seu criador. E a querer de logo biografa-lo, à la José Paulo, se calaria, mozarteanamente.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 10/12/2004