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Chegou o A-319

 

Em 1956, Juscelino comprou um avião para transportá-lo nas suas andanças. Eu era da gloriosa UDN, que combatia ferozmente o governo. Milton Campos contava que foi abordado por uma senhora já idosa: "O senhor não é o Milton Campos?". "Sim, senhora". "Pois eu, dr. Milton, sou da UDN roxa. Da nossa UDN da calúnia". Milton sorriu e disse: "Persevere."


Desencadeamos uma campanha danada contra essa compra. Era um Viscount, turboélice que surgira como grande avanço aeronáutico. Voava mais alto e de forma mais segura e era pressurizado. Aposentaria o velho DC-3, que vinha do início da Segunda Guerra, máquina que voava baixo, até 10 mil pés (hoje os aviões voam a 55 mil pés), sem radar e enfrentando qualquer tempo. Nenhum argumento racional nos fazia recuar. Nada de segurança do presidente, da necessidade de dar a JK melhores condições de fiscalizar as obras de Brasília. Com avião novo, Juscelino vivia no ar. Surgiu uma marchinha, depois do Viscount, que dizia: "Agora eu sei / porque o Nonô / nenhum momento deixou de voar...".


Quando assumi o governo, em 1985, o Viscount do Juscelino ainda era o avião reserva do presidente. Quando fui a Lisboa, Ulisses -presidente interino- ficou viajando nele, logo depois aposentado.


Em 1988, a Varig vendeu seus 707 com 25 anos de vôos internacionais. A FAB comprou cinco para abastecer nossos caças em pleno vôo. Recauchutamos dois para servir à Presidência. Neles viajei para a China, a Rússia, a França, os Estados Unidos, Portugal e outros países. Atravessando o Pacífico -etapa de 11 horas-, disse-me o brigadeiro Murilo Santos, um dos grandes nomes da FAB: "Presidente, nós aqui, batendo as asas neste velho avião, e os tubarões lá em baixo, de boca aberta. Esta se chama "a rota do tubarão feliz'". Em Moscou, quando voltávamos, já com as despedidas feitas, o nosso Sucatão não suportou o frio e teve congelado não sei o quê, atrasando a partida em quatro horas, para desespero dos russos, obrigados a ficar ali no aeroporto. Noutra vez, íamos ao enterro do imperador Hiroíto. Despedidas feitas na Base Aérea de Brasília, entrei no avião e começou uma fumaceira louca. É que ele estava deixando vazar óleo em cima das tubulações de gases quentes. Foi um corre-corre, tivemos de tomar outro avião para nos levar a Tóquio.


O Brasil é um país austero. Quem viaja oficialmente e é recebido em outros países pode verificar a modéstia dos nossos palácios, a dieta franciscana das nossas recepções e a simplicidade das cerimônias oficiais. Que seja assim mesmo, mas não podemos chegar ao exagero de querer que o Brasil, com um PIB de R$ 1,8 trilhão, passe pela vergonha de dizer que não tem condições de adquirir um avião para sua Força Aérea, que tem a obrigação de transportar o presidente em segurança e dar-lhe dignidade no mundo inteiro.


O avião não é do Lula, é do povo brasileiro, patrimônio do país. Amanhã, como eu hoje, Lula estará na fila da ponte aérea, e o Airbus 319 estará servindo a outros presidentes.


O que eu acho escandaloso é a hipoteca, que o Lula herdou, de o Brasil pagar todo ano R$ 300 bilhões de juros da dívida.


Quando uma mulher bonita aparece, esbelta, nos seus trinques, juventude e etc., dizemos: "É um avião". Outro dia, com um amigo meu, falamos de uma das musas da nossa juventude. Disse-me: "Está um sucatão".


Juscelino e Lula criticados por um avião novo.


Como critiquei o Viscount, sei que a paixão política não muda. Mudei eu, que já estou um "sucatão". Ainda bem, voando.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 14/01/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 14/01/2005