O IBGE divulgou um índice novo que nos torna mais moços e mais duvidosos sobre a contagem da nossa idade. A coisa passou assim meio desapercebida, a não ser o tratamento que lhe deu a Folha de S. Paulo, que entendeu a coisa. É que, ao aferir o índice de expectativa de vida dos brasileiros, hoje na casa dos 68,6 anos, na febre de saber tudo que ocorre na sociedade, aprofundando pesquisas, surgiu um novo critério de ''viver sem qualidade''. Isto é, não basta viver que não é viver, é preciso, para contar, viver ''com qualidade''. O diabo é saber que qualidade é essa. O índice aferido pelo IBGE diz que o brasileiro vive 21,3% de sua vida com alguma incapacidade, e não conta. Assim, a expectativa de vida de 68,6, que temos, passou para 54 anos.
Deu-me grande alegria e tristeza esse cálculo novo. Assim, eu, que tenho 73 anos, pelo IBGE só tenho 58, o que me fez muito alegre. Por outro lado, soube que passei 15 anos com alguma incapacidade de viver, segundo a média brasileira, onde estou incluído. Por especulação, comecei a deduzir, também, o meu tempo de dormir, de comer, de andar e outras deduções menores, e quase caí de costas, com a conclusão de que, por pouco, não tinha nascido. Ora, se calcular que levei dormindo 20% do meu tempo, cota baixa, devo diminuir, dos meus 73 anos, 15,6. Se passei sem qualidade de vida 15 anos e mais 15 dormindo, cheguei a 43 anos! Continuando a divagar nesse mar de hipóteses, se agregar a esses descontos o tempo de comer (uns seis anos), o de vestir, tomar banho, barbear, andar (mais ou menos 10 anos) e se fizer outras somas e deduções, descubro minha idade real de uns 15 anos! E se eu fosse frade, descontaria as sete horas que São Bento, no século 6, estabeleceu como as horas canônicas destinadas a oração.
Tenho 15 anos de vida! Se por um lado é motivo de alegria, pelo outro é de grande desolação. Viver não se deve contar por aquilo que significa o ''sopro da vida'', na imagem do Gênesis, nem na concepção daquele deus mitológico que sabia o ''mistério da respiração''. Viver não é nada disso, é ter qualidade de vida, dizem os cientistas e critérios estatísticos. E fico pensando que muitas pessoas que pensam viver, não vivem, tão atribuladas têm sido suas vidas. A vaca européia, que agora recebe um subsídio de mil dólares por ano, está com melhor qualidade de vida do que os nossos pobres lavradores do sertão nordestino.
Mas as minhas preocupações não ficam no terreno das especulações do que é viver e da média das expectativas de vida. Alcançam a influência que esse novo índice vai ter na reforma da Previdência e as suas conseqüências na interpretação do tempo de serviço. Quando se fala em aposentadoria compulsória aos 70 anos, a nova concepção, apoiada pelo IBGE, nos remete a 56 anos. Se a reforma estabelecer o critério da vida sem qualidade, vai haver gente trabalhando mais tempo, porque ainda não alcançou o teto da lei.
Veja-se como as estatísticas são dados preciosos e mexem com tudo. Há estatística para todos e várias maneiras de interpretá-las. A aposentada Arlete Bittar, ouvida pela Folha, sobre o novo índice, considerou-o tempo de vida ''um pouco mais chata''. Assim, ela resumiu concisa e sabiamente o que sabíamos: vida chata não é viver, não conta. E, como os 21,3% por cento da vida são chatos, não devemos contá-los.
Austregésilo de Athayde já adotava essa teoria na Academia Brasileira de Letras. Ele me disse: ''Aqui, Sarney, pode entrar bom escritor, mau escritor, sem ser escritor etc. e tal. Agora, só não pode entrar chato. Conviver com eles é chato.'' Eis o novo índice do IBGE, ele também é chato.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 04/07/2003