Foi um domingo especial este último, em que familiares, alunos, ex-alunos e colegas da ABL se reuniram para celebrar os 100 anos da professora Cleonice Berardinelli, doutora em Literatura Portuguesa, consagrada nos meios acadêmicos daqui e de Portugal por seus trabalhos — em especial os dedicados a Fernando Pessoa. Por algumas boas horas nos esquecemos da crise atual, do baixo astral, e passamos a evocar as décadas em que a Divina Cleo reinava com seu saber e carisma nos cursos de Letras da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, ao lado de um time de catedráticos de causar inveja: Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, José Carlos Lisboa, Celso Cunha, Hélcio Martins, Roberto Alvim Correa, Thiers Martins Moreira. Eram tempos em que “narrativa” designava o que romancistas como Machado de Assis escreviam, e não o que se atribui hoje às artimanhas usadas por Eduardo Cunha ou Renan Calheiros para se livrar da Justiça. Em vez de discutir o que é melhor/pior, se Temer ou Dilma, como agora, dividíamos nossas dúvidas entre Cervantes ou Camões, Pessoa ou Lorca. É verdade, éramos alienados, só pensávamos em literatura. Porém, valia mais a pena, como vale até hoje, quando a alma não é pequena. Nessa tarde, estavam ali alguns dos remanescentes daquela época de ouro: Margarida, Ana Maria, Gilda, Domício, Carlos, Cecchin, com direito a versos de Mário de Sá-Carneiro cantados por Adriana Calcanhoto. Alguém lembrou o dia em que Getúlio Vargas se suicidou. “Ouvimos a notícia e em seguida continuamos falando de um poema do Lorca”. Envergonhado, escondi a satisfação que tive porque seria feriado e, assim, não precisaria entregar o trabalho de casa que não tinha feito.
Bonita e elegante em sua cadeira de rodas, Dona Cleo recebeu seus admiradores por cerca de três horas, lembrando o nome de cada um com sua famosa voz cristalina de adolescente, que ainda impressiona, e a memória prodigiosa que se impacienta quando alguém parece testá-la: “Claro que me lembro, você já me apresentou”. Ou então: “Claro que me lembro, há muitos anos ele me entrevistou”. O mais divertido, porém, é o seu humor cheio de picardia: “Sua mulher está muito bonita, já você...”. Disciplinadamente na fila de cumprimentos, Padre Jesus Hortal, que foi reitor da aniversariante na PUC, acrescentava outro epíteto: “além de Divina, Celestial”.
Na hora do “Parabéns pra você”, a aniversariante cantou junto com todos e com sua bisneta Cleo, de 9 anos, que apagou as velinhas e ajudou a “bisa” a cortar o enorme bolo. Noventa e um anos separavam as duas Cleos, mas a animação era a mesma.