Devo reler ‘A Cidadela’, de A. J. Cronin? Devemos reler os livros que nos encantaram?
Passei por uma livraria, começo da noite, final de semana, e vi na vitrine um romance que me deixou arrepiado. Há quantos anos, e ponham quantos nisso, eu não via uma nova edição de A Cidadela, de A. J. Cronin? Naquele instante, me veio um turbilhão de imagens. Dei tanta entrevista falando de livros que me foram fundamentais e jamais citei A Cidadela. Injustiça de uma memória falha. E um de meus orgulhos é justamente esta memória acionada por cheiros, imagens, brisas, perfumes, sons.
Até hoje, e fazem mais de 60 anos que li o livro pela primeira vez, me lembro do parágrafo inicial, com o trem atravessando uma cortina de névoa entre as montanhas do País de Gales. A uma curva, o revérbero vermelho de uma fundição lampejou. Esta palavra revérbero ficou impressa na mente, eu adorava e temia começos de noite chuvosos, as luzes amareladas e fracas da iluminação pública de Araraquara, a solidão das ruas no final dos anos 1940. Há outro motivo para a atração por esse clima sombrio, eu tinha lido três vezes seguidas A Estalagem Maldita, de Daphne du Maurier, que se passa nas charnecas da Cornualha e aquele clima pesado, gótico me dominava a alma. Perdoem-me, não resisti, cometi este: me dominava a alma. Foi uma delícia ter 16 anos e sentir os horrores das atmosferas góticas, sombrias, tão poéticas. Bem, o gótico era por minha conta, A Cidadela, de Cronin, é muito mais ação social, o complicado dilema de um médico que se debate entre o ideal e o dinheiro. Pode ser que estes tempos de pandemia, em que milhões de médicos se viram diante de uma realidade trágica, muitos precisando decidir quem salvar e quem deixar morrer, favoreçam a reedição desse clássico. História de um jovem médico em sua primeira clínica em uma remota vila de Gales.
Naquele breve instante diante da vitrine da livraria vi o doutor Renato Bastos, pediatra, chegando em minha casa para ver meu irmão Luiz Gonzaga, na cama há dias, sem comer. A chegada do médico era solene. Era preciso chamar um carro de aluguel (táxi, somente em filmes), deixar a casa em ordem, colocar uma bacia de louça, uma jarra com água, fresca, toalha para o médico assear-se – como diziam – e examinar o paciente. Antes e depois, o doutor higienizava-se com álcool. Como o álcool gel me lembrou daqueles tempos. Naquela tarde, o doutor Renato trouxe o romance de Cronin para meu pai. “Leiam, vocês que acham a vida de um médico fácil.” Uma semana depois, meu pai me entregou A Cidadela. “Você vai gostar. Pense neste livro quando for decidir sua vocação.” Naquele tempo, dizia-se vocação. “Veja como o sonho nada tem de romantismo.”
Li não sei quantas vezes esse romance. Era um grande autor ou apenas um honesto autor de entretenimento? O que importa? Adorei o livro. Misturava Cronin com Zola, Somerset Maugham, Huxley, Pearl Buck, Steinbeck, Theodore Dreiser, Sinclair Lewis e vim caminhando pela vida de livraço em livraço. De tempos em tempos, Cronin reaparecia na imaginação, mas estava esgotado. Uma vez, meados dos anos 1970, encontrei uma edição do Círculo do Livro – aquele dirigido pelo Fernando Nuno, todos livros encadernados – em Ribeirão Preto, na Banca da Oracilda. Comecei a ler no ônibus e, quando desci para um café na rodovia, alguém levou.
Agora, me deu uma ânsia e um medo. Devo reler Cronin? Devemos reler os livros que nos encantaram? Ou fico com a aura daquela época? E se a realidade me destrói o sonho? Entre aquele Ignácio e este aqui se passaram 70 anos. E se eu decidir: vou gostar? Quero gostar. Sei que a tentação é grande. Adoro uma tentação. Vejam que dilema bobo. Mas a vida é assim, tem tanta coisa boba a nos importunar.