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Catástrofes e burocracia da morte

 

A catástrofe de Port-au-Prince não foi só ao extremo do que pode um terremoto, num centro urbano contemporâneo. Precipitou imediatamente uma onda inédita de cooperação internacional, que deverá tornar irreversível, de vez, o que seja o sentimento de uma humanidade ferida no próprio cerne de sua sobrevivência.


Fomos atingidos pelo único percalço - o geológico - que escapa a nosso controle, já que, hoje, dependeriam de nós as duas outras catástrofes potenciais do nosso tempo: a da explosão atômica ou a das pestes e pandemias, a que as organizações mundiais da saúde logram, como vimos, por cobro, com a contenção da gripe suína neste ano findo.


Dispomos de um mapeamento genérico do que sejam os choques de placas tectônicas, mas não na intensidade desses abalos na capital de um país, e de precaríssima estrutura de construção, como a do favelão de Port-au-Prince. Mais ainda, sobre a devastação pesa o espantalho de que se repitam, levando ao pânico continuado de uma população exilada nas ruas.


A moção de ajuda de fora, por sobre o emperro das estruturas e aparelhos, aí está, no inédito da reunião de Obama, com os ex-presidentes, e no uníssono em que as Casas Brancas, atuais e passadas, vão somar o auxílio público à conclamação da cidadania privada americana para a reconstrução do Haiti. Nem se atrasou o beautiful people, em trazer milhões a esses fundos, a partir de Brad Pitt e Angelina Jolie, em números que aí estão, a reptar as bolsas e a pecúnia avarenta de Wall Street. Não abriu os seus cofres a Alemanha, a nação mais rica da Europa, em mais de melancólicos US$ 2 milhões, entretanto. E não se tem ainda dimensão do horizonte latino mais próximo no que venha a ser o concurso espanhol, francês ou italiano.


A tentação promocional nestes contributos internacionais vai ao vezo retórico de Sarkozy, de pedir reuniões e comitês prévios, para montar a arquitetura do espetáculo da caridade, frente à urgência do dinheiro, do equipamento ou da farmacopéia diante da iminência da pestiferação de uma cidade impossibilitada de remover os cadáveres da catástrofe.

 

Avulta, nesse contexto, o perfil do contributo brasileiro, tanto os recursos financeiros, como da prontidão com que, das tropas locais aos bombeiros de Brasília, puxamos dos escombros mãos ainda pulsando, dos semi-enterrados por dias sucessivos.

 

A poeira do horror baixou sobre o vórtice de um Estado destruído, criando uma competência internacional, de fato, para o desempenho das tarefas públicas elementares, da segurança e assistência pública ao próprio trânsito da cidade. E nesta mesma medida, ao risco de um desastroso conflito de autoridades em que se desenharia um indigitado controle americano sob a devastação.


Devemos ao ministro Jobim o sustento da mantença do formato das Nações Unidas neste empenho e o papel primacial que cabe ao Brasil nesta hora. A revelia, e em nome da caridade, não pode passar ao "big brother" a consciência internacional à obra, e à prova, exatamente, pelo horror de Port-au-Prince, de desponte de novo laço irreversível de cooperação verdadeiramente global.


De toda forma, é de se lamentar a lentidão chinesa, hindu, ou de quase todos os Brics, neste concurso, ao lado da impassibilidade, ainda, do mundo muçulmano. Mas é a da organização mesma da ONU que se deverá cobrar a expertise logística para resolver outro dos paradoxos que nos revelam os fragrantes do caos. São pirâmides de alimentos que adormecem nos depósitos, à falta da logística mínima que penalizou toda distribuição, à míngua das bocas da população. O que a generosidade pode, a burocracia aborta, e a urgência dos serviços continua trôpega diante da amplitude da dádiva e da comoção universal.


Jornal do Commercio (RJ), 22/1/2010