Muito comum, nos setores da inteligência nacional, reclamar contra a existência de dois Brasis, o rico, que procura viver em ritmo de Primeiro Mundo, e o pobre, que, em alguns casos, atinge o grau da miséria absoluta, sem saúde, sem escola, sem terra, sem comida e sem nada. Evidente que existem realmente dois países dentro de um só, ou melhor, duas nações dentro de uma.
Não é apenas no setor econômico que o Brasil dividiu-se em dois. No setor cultural também já existem duas nações que não se misturam, que cada vez mais se distanciam. Assim como há nababos que têm contas nas Ilhas Cayman, iates colossais em Miami, apartamentos em Nova York e vilas na Costa Azul, há na cultura nacional o povo eleito que sabe das coisas, que está por dentro do mais recente filme do Almodóvar ou da mais antiga bobagem do Andy Warhol.
Gente que compara a batida do violão do João Gilberto aos afrescos da Capela Sistina. E os gorjeios do Milton Nascimento aos "Cantos Pisanos" de Ezra Pound. Para a plebe ignara, que não sabe o que é a Capela Sistina nem nunca ouviu falar de Pound, além de nebulosa, a comparação resulta inútil.
Este Brasil sofisticado, culturalmente correto, equivale aos novos ricos que festejam o aniversário de seus animais domésticos ou expõem sua vida em reality shows e tem direito à ampla cobertura na mídia.
Falei em "culturalmente correto" e acho que falei bem em vez de falar mal. Faz contraponto exato com o politicamente correto, que começou simultaneamente ao Consenso de Washington e tem como objetivo separar as águas, criando em escala internacional os países ricos e corretos (na política e na cultura) e os países pobres (ou miseráveis), que insistem em continuar errados politicamente, querendo soberania, liberdade e desenvolvimento.
Assim como a recente onda do neoliberalismo reduziu o Brasil ao estágio colonial, ao país portuário que depende do cais para exportar matérias-primas e importar produtos industrializados, a cultura correta recria o estágio da casa-grande e da senzala.
No salão da casa-grande cabem os culturalmente corretos, que são obrigados a gostar das mesmas coisas (corretas culturalmente), que continuam contando uns aos outros a história do gato do citado João Gilberto que se suicidou por causa de um pato; do banheiro do bar Antonio's que, durante um assalto, ficou entupido de intelectuais da zona sul, dos emocionantes começos da bossa nova.
Os mais velhos e eruditos contam às novas gerações culturalmente corretas a história das sardinhas do Báltico do José Sanz e se emocionam quando passam pela esquina do antigo bar Veloso, sítio sagrado, que equivale ao monte Tabor, onde a garota de Ipanema foi vista pelo Tom e Vinicius, numa transfiguração que só tem igual quando viram Jesus no céu, ao lado de Moisés e Elias.
Na senzala, bem, na senzala são permitidas as expressões mais grosseiras da arte e da cultura, as bruxas de pano ou de barro da barbárie suburbana, da sub-humanidade que se amontoa nos grotões das classes D e E e nas filas do Bolsa Família e do Seguro Desemprego.
Para a turma da casa-grande, os programas de auditório e o bumbum das funkeiras equivalem ao culto dos orixás que os negros trouxeram da África. São menosprezados, mas vistos com entusiasmo.
O povo eleito da casa-grande e os gentios da senzala são estanques por exigência do politicamente correto. E antagônicos por força do culturalmente correto. Criam-se assim as duas nações, a casa-grande desprezando a senzala. E a senzala, embora respeitando os valores da casa-grande, preferindo ter seus próprios valores.
Apesar da patrulha da casa-grande que tenta destruir os ícones da turma contrária, a senzala resiste e muitas vezes vence a partida a longo prazo.
O ponto de encontro entre os dois Brasis são as novelas, o futebol, os reality shows e, em certas oportunidades, a bunda das mulheres.
Folha de S. Paulo (RJ), 23/8/2013