Sopram novos ventos em Santiago. Passam pela casa de Pablo Neruda. E seguem ao sul e ao norte do país. Volto de lá fascinado com as manifestações dos estudantes do ensino médio e superior do Chile, em favor de uma educação pública e gratuita, de alta qualidade e acesso universal. Da carta enviada ao agora ex-ministro da pasta, uma das ideias centrais consiste na defesa da educação pública como pedra de toque do regime democrático, foro privilegiado de uma sociedade que se espera mais justa e mais fraterna.
As ruas e praças da capital lembram um caderno coletivo e descontínuo, cujas folhas testemunham a inscrição de uma aula prática sobre a democracia, com desenhos criativos, grafites e epigramas, que geram uma leitura amadurecida do pleito estudantil, ao longo dos edifícios da avenida O’ Higgins ou da grande praça de Armas.
As escolas e as universidades estão ocupadas há mais de dois meses. Os sinais externos da ocupação podem ser vistos nas carteiras, cravadas nos muros de ferro das escolas, como se fossem instalações de uma galeria contemporânea, que lembram algo de A Casa, do artista plástico José Bechara.
Mas é da casa interna que se trata. E com uma agenda capaz de evitar os riscos da entropia. Cito, ao acaso, algumas das atividades oferecidas ao público, tais como ensaios abertos e peças de teatro, música popular e instrumental, recitais de poesia, em língua espanhola ou dos índios mapuches, palestras de ética e política, doação de sangue e alimentos, além da corrida diuturna, em torno do palácio de La Moneda, com grupos de duas ou mais pessoas, que se revezam. E, por fim, um curso de gestão patrimonial, porque os estudantes se consideram gestores ad hoc, e não vândalos dos edifícios ocupados, que pertencem à cidadania, como vêm repetindo.
Longe de uma possível complacência, os jovens não arrefecem a ação política e a vontade de um diálogo honesto com o novo ministério. Mas é apenas o início. A confederação dos estudantes, a associação de reitores e o sindicato dos professores do Chile, querem mudanças estruturais, que possam garantir, ao mesmo tempo, a gratuidade da educação pública e a nacionalização do cobre. E não parece fácil pensar que o governo neoliberal de Piñera se disponha a enfrentar o que a coalizão das esquerdas não realizou antes.
Embora sólidos, os interesses antidemocráticos não dispõem de blindagem suficiente que resista a um clamor público, legítimo, sentido há mais de quatro décadas.
O processo ainda não passou das primeiras páginas, mas o círculo de giz encerra o binômio democracia e educação, revelando, assim, como a ação dos estudantes pôde abrir uma pauta de discussão, atenta às formas potenciais da democracia. Esses mesmos potenciais que, para Boaventura dos Santos, “precisam estar em relação com uma sociedade que aceite renegociar as regras da sua sociabilidade, acreditando que a grandeza social reside na capacidade de inventar”. Uma participação que se mostre mais abrangente que hegemônica.
Essas cartas chilenas parecem tocar nos desafios do regime democrático na América Latina. Como se tudo dependesse de uma aposta que desague na cidadania plena, com um tônus representativo que não dilua a ênfase no modo direto ou participativo. Um vigor democrático, em que o modelo majoritário se abra para o modelo consensual, segundo uma democracia generosa, inclusiva, como defende Arend Lijphart.
A poética dos estudantes de Santiago emociona aos que vivem nessa época de refluxo dos projetos de libertação, quando o desencanto parece ter dissolvido os riscos e grafites da utopia. Folheio, na livraria de Omar Lara, em Concepción, um livro do poeta Jorge Teiller, e anoto: “volto a sonhar os caminhos.”