Meu caro amigo
Escrevo para lhe dizer que vamos bem ao sul do Atlântico e de Deus. Algo inquietos com os desafios que se prolongam diante de nossos olhos e assaltados por uma chuva de perguntas, diante da qual não temos respostas.
Alguém disse que o futuro havia de durar muito tempo, razão pela qual precisamos lidar desde agora com suas variantes potenciais. Não apenas com aquelas de ordem política e econômica, mas, sobretudo, com as de ordem cultural, que regem, ao fim e ao cabo, o diálogo entre os povos.
Sei que não há novidade no que apresento. Espero apenas mostrar como e quanto as reflexões que fizeste ainda se impõem nos tempos da baixa modernidade.
Volto às paginas de tua A aventura ambígua, romance tão triste, que marcou mais de uma geração de intelectuais, com aquele ar irrespirável, por onde se move Samba Dialo, depois de perder suas raízes profundas e, por extensão, o sul e a fé. Uma personagem realmente fracionada. Penso em Dialo – mas não sei se estás de acordo –, como quem arrebanha uma gazela, morto de fome, impiedoso, e com um brilho estranho nos olhos; como quem sabe que o futuro é um apelo de fogo, e já se imagina fênix, a ressurgir das cinzas do passado; como quem desperta de um infinito abandono, com a identidade em mil pedaços. Dividido entre a Europa e a África.
Tão exilado nas vísceras do entre. Teve razão quem disse l’ avenir dure longtemps.
Os tempos mudaram, Hamidou. Nós somos outros. O Atlântico e o Mediterrâneo já não são os mesmos. Olhamos cada vez mais para a África e dentro dela nos reconhecemos. Alberto da Costa e Silva, que de certo conheces, propôs uma nova leitura do Atlântico, não como oceano, mas como se fosse um rio, digamos, um Amazonas, para tecer um conjunto de aproximação entre nossos países. Essa hermenêutica fluvial, fundada por Gilberto Freyre, nos anos trinta do século passado, e aprofundada por Alberto, encarna uma leitura mais participativa dos laços vigorosos que nos prendem. E libertam.
Acho que deves apreciar essa ideia, que se impõe por si mesma, tornando mais abrangente nossa reflexão.
Quando menino eu imaginava a África pouco além do horizonte da praia de Copacabana. Imagine, Hamidou! Um passeio de lancha seria suficiente para alcançá-la. Dava como certo que não estava longe. Somente agora vejo que não ia errado. O mesmo rio Atlântico avança Brasil adentro com todas as áfricas dispersas e plurais. O Norte, o Chifre, as areias de Tamanrasset e Timbuctu, bem como o Índico e as noites de plenilúnio narradas por Rui Knopfli.
A língua portuguesa, meu caro amigo, deve muitos de seus tesouros ao universo magrebino e subsaariano, através de cuja herança logramos uma forma algo mais dúctil. Podemos dizer recife ou arrecife. Certas partes do corpo, cheias de colorido, que pronunciamos em segredo. E o modo de tornar macias as palavras, de que o pronome de tratamento você é dos mais clamorosos. Os africanos arrancaram – ainda com Gilberto Freyre – algumas espinhas da língua portuguesa, tal como quando davam de comer aos meninos, tirando com o devido cuidado as espinhas do peixe.
Sei que aprecias esta imagem, amigo íntimo das metáforas, meu amigo Hamidou. Confundem-se peixes e palavras, sob o signo de uma interpretação líquida. E podia oferecer outros exemplos, mas, que, de tão conhecidos, arriscaria repisar ideias e conceitos que dizem o que fomos, mas não abrem espaço para as formas potenciais a que aludimos acima.
De minha parte, lembro-me do encontro que tive no Cairo com Nagib Mahfuz, das viagens ao Marrocos e à Mauritânia, quando me entregava aos estudos da língua árabe e do islã. Depois, vieram amigos e poetas tão diversos entre si, como os de Angola e Guiné Bissau, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe. Tenho para mim que os brasileiros sentem saudades de Dom Sebastião. Sentem, sem perceber ao certo. E dizem saudade. Não para restaurar o Quinto Império, como quis Antonio Vieira, com sua notável História do futuro. Antes, um Dom Sebastião desprovido de cetro, livre dos sinais de poder absoluto, como se encarnasse a promessa de um diálogo ecumênico. Do qual restasse apenas a metáfora em estado puro. A imagem do Desejado. E das naus que o procuram por todas as latitudes.
Pensei na metáfora de Portugal rodando a África, para descrever o momento em que recuperei a consciência, na unidade de terapia intensiva do hospital Santa Cruz. Eis o poema do livro Meridiano celeste & bestiário:
Vestígios de mar
na cerração do hospital
vejo as costas de Benin e
Moçambique
Sou um navio
desapossado
preso a liames
e cordoalhas
Içam
da garganta
a âncora
que baixaram de madrugada
A voz
do médico
ao longe
Você sabe
onde está?
Claro que sim
estou
em mar português
E o Patriarca de Lisboa
manda lembranças
ao Samorim
Precisamos recobrar a consciência – não necessariamente hospitalar – mas a de fundo histórico para aderir em plenitude ao diálogo dos múltiplos extratos do Brasil com as partes da África. O apelo de fogo do futuro tem aberto não poucas janelas. Precisamos uns dos outros, Hamidou, porque há elementos identitários que mal se revelaram entre nossos povos e que apenas a mútua compreensão poderá resgatar, de modo contundente, senão inesperado, os Zaires e Calaáris, que nos formaram, num ritmo claro de África, segundo Agostinho Neto:
A liberdade nos olhos
o som nos ouvidos,
das tuas mãos ávidas sobre a pele do
tambor
num acelerado e claro ritmo
de Zaires Calaáris montanhas de luz
vermelha de fogueiras infinitas nos capinzais
violentados
harmonia espiritual de vozes tam-tam
num ritmo claro de África.
O conceito de liberdade a que se refere Agostinho é o ponto nevrálgico do diálogo em que tanto devemos insistir.
Pouco importa o lugar onde nascemos, Hamidou. A identidade é ponto de partida, não de chegada. É pano de fundo, não sendo apenas um script imutável. Preciso do outro para alcançar-me, não me basta o princípio do espelho ou o de não contradição. Gosto do poema “Naturalidade”, de Ana Mafalda, quando diz justamente:
“Chamam-me europeia ou africana, que fazer senão calar? Meus versos livres, livres xingombelas, livres pomos, voam sem chão, neste chão que trago por dentro da casa móvel que me atravessa o sonho. Muito por dentro de todas as paisagens acorda aí esse teu , este meu, quebranto dolente, luz que as tardes em brasa levantam na alma acordada em seu abrupto amanhecer. É provável e é certo ser este meu corpo entrançado de liana e liamba uma trepadeira de nuvens em que o arco-íris morde a cauda de muitos céus em desvario, porque a alma sem sossego acasala seres bifrontes, monstros de um Hermes apátrida.[...] acesa, pátria minha, passaporte, naturalidade, só uma, a poesia”.
Estamos com Ana Mafalda, Hamidou. Nossa identidade é felizmente ambígua e multifária, como a de um mosaico de luzes e de células sonoras, em cujo quadro nos reconhecemos, ainda que não identifiquemos ao certo a origem de cada parcela ou fragmento que nos reveste. Somos feitos de um tecido poroso, Hamidou, somos trezentos. Somos trezentos e cinquenta.
A poesia é a pátria pela qual somos habitados, aquela que confunde e emociona. Mais do que uma geografia política, trata-se de uma geografia difusa.
Nessa chave cultural, confesso que tenho pensando cada vez mais intensamente na Etiópia. Comecei a estudar as regras básicas da língua amárica, as religiões e as culturas daquele país. Como não admirar a longa permanência de um cristianismo todo seu, ligado por séculos à igreja copta de Alexandria, com centenas de mosteiros que se perdem nas solidões rochosas de uma sentida metafísica? Penso em Lalibela. Em Dabra Damo. E no livro de Luis de Urreta que é uma invenção radical e, ao mesmo tempo fascinante, acerca dos etíopes. Disseram-lhe mentirosa aquela obra. Considero-a utópica e em estado puro. A que se soma a presença dos falashas, que guardaram a memória judaica do que seria o último bastião davídico no coração da África. Além da fortíssima presença do islã, a partir de Harare, mas não apenas, em cujos arredores viveu o admirável Rimbaud, apátrida, giróvago e exilado.
A Etiópia dos espíritos e das formas tribais igualmente sublimes que ainda vivem, lado a lado, com a misteriosa Arca da Aliança, guardada no santo dos santos de um templo que só o patriarca da Igreja etíope sabe dizer exatamente onde se encontra.
Esse é de todos o maior fascínio: o país do Preste João, com sua geografia ligada ao Éden. Tenho para mim, Hamidou, que dom Sebastião, o Desejado, esteja escondido em alguma parte daquele reino, depois de estreitar amizade com o mítico Preste João. E de novo, o aceno do futuro. E sempre a partir desse mal de África que provaram pessoas tão diversas Câmara Cascudo e Ryszard Kapuscinski.
Eis um fragmento de poema que escrevi pensando na perspectiva dessa utopia incerta e flutuante, na busca eterna de um Dom Sebastião como símbolo da paz:
Breve longo
raso fundo
meu reino vive
a dar palavras
ao mundo
O nome Sebastião
é um maço
de ausências malferidas
um feixe
de prodígios e visões
Sigo
os despojos de el-rei
nas noites límpidas
em pleno oceano
pelos sertões
bravios do Brasil adentro
nas costas
rudes da Mina
por onde passam
búfaros gazelas alifantes
Não tenho
novas del-rei
apenas indícios:
nas montanhas celestes
do Preste João
nas terras pingues
e abundantes do Brasil
por onde avança
mais disperso o Desejado
Flutua
em precipícios
a palavra Sebastião
e morre a cada frase
em que renasce
nos dilatados
longes
dessa língua
de cravo perfumada
e de gengibre
Meu prezado Hamidou, peço desculpas se me tanto me estendi. Releva, por favor, as referências que fiz de minha poesia. Usei-as porque precisava embrenhar-me nessa pátria sem fronteiras. E se me estendi com a Etiópia é porque a considero uma das sínteses a partir da qual podemos pensar uma parte do Brasil. Não me queiras mal, Hamidou. Gostaria de saber como estás. Quando puderes, manda notícias a teu leitor inquieto, ao sul de Deus e do Atlântico. Aceite o meu abraço cordial!
Livro do Seminário do Primeiro Curso para Diplomata Africanos.
RJ,Fundação Alexandre Gusmão, 2010