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Carta de um amigo aos prantos

 

A carta era estranha também pelo tipo de queixa contra o tempo que passou para ele


RECEBO DE amigo, um dos raros que a morte ainda não levou, uma carta estranha em todos os sentidos.


Quase não se usa mais este tipo de comunicação, elas se foram, substituídas e superadas pelos e-mails. Mas o "conteúdo" era tão próprio, tão dele, que preferiu o antigo sistema epistolar, mais íntimo, mais laborioso, sem risco de ser devassado por curiosos estranhos nos complicados atalhos da informática.


Estranha também pelo tipo de queixa contra o tempo que passou para ele e para as mulheres que amou e, segundo ele, o amaram. No fundo, nenhuma novidade no desabafo que me encaminhou.


Creio até que, em conversas casuais, ele já tenha feito considerações parecidas sobre a passagem dos anos na vida em geral, sobretudo nas pessoas.


Lembro que numa de nossas conversas, quando ainda tinha a mania de citar em latim, lembrei um velho ditado: "Tempora mutantur et nos cum illis". Os tempos mudam e nós mudamos com eles.


De qualquer forma, a carta do amigo podia ter sido escrita por muita gente, inclusive por mim. Para não publicar um texto anônimo, vou atribuí-lo a um imaginário "Sexta-Feira" -o amigo de Robinson Crusoé na ilha deserta. Sirvam-se:


"Não sei: de repente, numa associação de acasos e numa sucessão de ocasos, esbarrei com antigas mulheres que, de uma forma ou outra, amei, e, também de uma forma ou outra, me amaram. É fácil, e mais do que fácil, é cômodo e lucrativo a gente esquecer que o tempo passa também para nós. Nós o vemos na cara dos outros, quase nunca na nossa. A reflexão pode ser banal, nem por isso ela desmerece quem a faz. Afinal, todos os dias temos o encontro com a nossa cara no espelho, no nosso próprio rosto, no nosso gosto.


De encontro em encontro, habituamo-nos a ela e a achamos natural. Assimilamos diariamente as nossas repugnâncias, nossas feiúras, nossa decadência. Numa palavra: ficamos sempre atuais para nós mesmos. Já com os outros, principalmente com as mulheres antigas, os encontros são esporádicos, casuais, inesperados e chocantes -no mau sentido da palavra chocante.


Pois foi isso que aconteceu. No espaço de sete dias, uma semana exata, esbarrei com três antigas mulheres da minha vida, por sinal, todas mais ou menos contemporâneas, ou seja, passaram pela minha vida ao mesmo tempo, talvez simultaneamente.


Todas tinham um ponto em comum -elas que nada tinham de comum naquele tempo: estavam melhores do que eu. Em todos os sentidos. Os cabelos de uma embranqueceram, de outra foram castigados pelas sucessivas tinturas e a terceira estava de peruca, talvez uma doença, talvez vaidade inútil e anacrônica. Mas os cabelos até que passavam. O tom da pele foi o que mais me espantou: não adianta a mulher fazer plástica, musculação, usar botox, submeter-se aos tratamentos de embelezamento e rejuvenescimento. A pele não mente. Todas elas tinham, lá no passado, aos 25 ou 32 anos, a pele macia ao olhar, sensual ao tato.


Banalidade por banalidade, e já que cometi uma lá atrás, aí vai outra: nelas, a pele era fina e delicada como a que envolve uma fruta cheia de sumo e aroma. Pois as mulheres, no todo, eram isso mesmo: ânforas de sumo e aroma (a banalidade continua, mas sinto um gosto doentio em ser banal nesta carta tão banal).


Bem, podia acrescentar que uma delas engordou, que outra ficou magra demais e que a terceira, afinal, ficou mais ou menos como era -só que um pouco amassada, como uma fantasia de Carnaval depois do Carnaval.


Elas procuraram ser gentis comigo e eu fui gentil na medida de minhas possibilidades: pouco falei com elas, a fim de não cometer uma gafe ou involuntária grosseria. Creio que este silêncio, esta pressa no afastamento, foi recíproco: não me senti confortável com nenhuma delas e tenho certeza de que o mesmo aconteceu com elas.


Se o Diabo me aparecesse e me prometesse a mocidade de volta, mesmo sem ser em troca de minha desvalorizada alma, eu não toparia o negócio. Voltar àquelas mulheres? Paradoxalmente, foi depois dos 40 anos, e até mesmo depois dos 50, que a minha vida ficou interessante neste departamento. Agora, não mais terei tempo para olhar retroativamente e ver, nas mulheres recentes, o mesmo estigma que vi nas antigas."


Folha de S. Paulo (SP) 9/5/2008