Seguindo uma tendência do jornalismo de serviço, com dicas especiais sobre os melhores filmes, livros, shows, restaurantes e guloseimas várias, iniciamos hoje uma série de receitas não apenas saborosas mas com alguma coisa de cívico, num momento em que o povo em geral está clamando nas ruas por melhores condições de vida, saúde e vergonha.
Ofereço uma deliciosa canja de corvo, acepipe mais ou menos extravagante e mais ou menos purgante, prato muito rico em vitaminas e sais minerais, que, apesar de estranho ao paladar, é desejado por diversas facções e contrafações daqui e do exterior, oferecendo ainda a possibilidade de embargos infringentes por parte do Supremo Tribunal Federal.
À canja, pois. Ingrediente único e bastante: um corvo.
As leitoras talvez se assustem, mas esse prato começa a ser extravagante logo no início. Não são precisos muitos temperos. Apesar de o corvo preferido já ter atingido o seu climatério, donde a carne dura e a invasão do fel em suas entranhas, o apetite de todos pede que se conserve a autenticidade do gosto.
Todos querem comer o corvo, e um corvo é um corvo. Tampouco deve-se evitar a retirada do fel: de tal maneira está entranhado na carne, que, além de impossível, é inútil. O fel é que lhe dá o sabor e a dimensão de corvo.
Modo de preparar: Deve-se lavá-lo de dentro para fora. Apesar de o corvo habitar os pântanos e carniças, a sujeira de dentro é sempre maior do que a de fora. De bom alvitre é o método empregado pela culinária mais recente: injetar 2.000 unidades Oxford de penicilina potássica na carne, a fim de evitar infecções e distúrbios no aparelho intestinal. Tomadas as precauções, deixar o corvo de molho, ao relento, se possível no exterior (não vejam nisso qualquer alusão ao fato de um notório corvo em nosso passado republicano ter ficado no Exterior, de molho também, a pretexto de explicar atos e fatos ocorridos no Brasil).
Modo de servir: Há apetites para tudo, quando se trata de tão belo exemplar de corvo. Há aqueles que preferem devorá-lo vivo mesmo, com tripas e tudo. Os estômagos mais delicados preferem o fogo lento e o inevitável acompanhamento de um copo de cachaça, se possível pernambucana. Mas o nosso assunto é a canja não que o assunto seja canja no sentido figurado de coisa fácil, de jogo mole como o recente Brasil e Austrália, que terminou em 6 a 0 para gáudio do Felipão. Por isso convém desfiá-lo, pacientemente, aproveitando-se a gordura. Jogue tudo isso em água fervente com cinco dentes de alho para desinfetar e a canja está pronta. É a hora do prazer.
Cuidado, há um perigo na preparação do prato. Depois de tanto trabalho, há sempre a possibilidade de um logro: o corvo virar galinha. E para fazer canja de galinha procurem em qualquer almanaque as receitas. Aqui, só receitamos bródios salutares e nobres. Afinal dizem os entendidos entre um corvo vivo e uma galinha morta não há diferença nenhuma. Seja honesta para com os convidados: sirva o corvo de verdade e verá que o número de seus amigos aumentará.
Você será citada entre as dez mais de qualquer coisa e terá, ainda por cima, prestado um favor ao país, livrando-o de mais um corvo em busca de nossas carniças.
Folha de S. Paulo, 20/9/2013