Já foi moda chamar o Brasil de "país dos bacharéis". Mas as novas gerações, aparentemente, ficaram com os economistas, porque essa profissão, outrora pouco prestigiada, virou a nossa mentora mais visível. Temos sofrido, nas últimas décadas, todos os tipos de astros da ciência econômica.
E estrelas, claro, pois não podemos esquecer injustamente d. Zélia Cardoso de Melo, autora intelectual do golpe de caratê que derrubaria de vez a inflação brasileira e causou a ruína, ou até a morte por desgosto ou suicídio, de um sem-número de cidadãos indefesos, cujas economias foram tungadas com uma canetada só - brutalidade despótica que somente um povo de índole manifestamente ovina, como nós, agüenta, como agüentou, calado e quieto. E nos acostumamos a um fenômeno que também parece tipicamente nacional: o economista permanece no poder algum tempo, não faz nada ou faz tudo errado para, em seguida, sair do Governo e passar a ensinar a seus sucessores como proceder.
Mas a verdade é que não deixamos de ser a república dos bacharéis, notadamente em nossa mentalidade, mesmo a de quem nunca passou nem perto de uma faculdade de Direito. Eles apenas saíram habilmente do proscênio e continuam a mandar no país ou se fartar à custa de nossa situação, não ofendendo a todos, naturalmente. Cumprimos assim a temível praga mexicana "entre abogados te veas" - "que te vejas entre advogados" -, horror de maldição que sempre faz com que eu me benza ao lembrá-la. No curso dessas reformas atamancadas que estão vindo por aí, como a da Previdência, com a qual ninguém parece concordar e a ninguém parece agradar, o que surgirá de rolos para advogados desfazerem a peso d'oiro não está escrito.
Vai ser uma festa, que já deve ter começado. A reforma tributária, que se afigura ainda mais embananada do que a da Previdência e depois da qual os remediados e pobres passarão a pagar cada vez mais e os ricos e poderosos cada vez menos, embora se repita santimonialmente o contrário, também deve fazer a felicidade dos advogados, não somente dos tributaristas, mas até, imagino eu, dos criminalistas e, assim ou assado, de todos os especialistas da área jurídica. Estamos complicando mais, estamos inventando mais novidades, algumas das quais indestrinçáveis pela própria natureza, que só resultam em fazer prosperar a terra dos despachantes, dos recadastramentos (já repararam como tudo no Brasil, do Detran ao CGC, é periodicamente recadastrado? Suponho que deve até haver empresas especializadas em dar assessoria a recadastramentos), da firma reconhecida, das certidões e atestados, do "comparecer pessoalmente" para esperar em filas, ser maltratado e apresentar documentos esotéricos, do "por fora" para adiantar processos e por aí vai.
E continuamos também a resolver tudo por meio de leis. Não faz muito, toquei aqui, assumindo um ponto de vista politicamente incorretíssimo, no assunto da lei ainda em tramitação, sobre a proibição de armas. Persisto em não ter e ser contra o uso de qualquer arma, mas não dá para engolir a hipocrisia de "desarmar o país", quando todo mundo sabe que não se vai desarmar bandido nenhum, mas exclusivamente quem respeitar a lei. Assim como não dá para engolir o dilema "anta-fiscal do Ibama", que já vi comentado, com variantes, em botecos e salões. Trata-se da constatação de que, mesmo quando o caçador mata um animal selvagem para comer porque precisa, está cometendo crime inafiançável e sofrerá as duras penas da lei, enquanto matar gente, a depender das circunstâncias, é afiançável e talvez não redunde, como não redunda para quem pode, em punição alguma. Ou seja, se o sujeito for pego matando, vamos dizer, uma anta (ou mesmo tirando um pedaço de casca de árvore silvestre para fazer remédio, como foi noticiado recentemente), é mais negócio matar o fiscal que responder pelo assassinato da anta. Não estou, evidentemente, aconselhando a que se mate ninguém, mas matar a anta é inafiançável e dá cana dura, enquanto matar o fiscal pode sair bem menos trabalhoso.
Agora, pelo menos no Rio de Janeiro, está sendo proposta, segundo li nas folhas, uma lei que imporá o fechamento, das 23 horas até as 6 do dia seguinte, de estabelecimentos como bares, botecos e, não tenho certeza, muitos outros que funcionam à noite. Isso, no ver de quem apresentou ou apóia o projeto, deverá exercer significativo impacto na violência. Claro, claro, é como no caso do porte de armas. Se ficarmos na rua depois das 11, talvez estejamos infringindo a lei, mas, se formos assaltados, poderemos nos defender do assaltante, apresentando-lhe o texto da dita lei. Ele vai ficar envergonhadíssimo e irá embora, achando que pagou o maior mico da vida.
Pergunto se, em vez do toque de recolher proposto, não seria melhor baixar logo uma lei proibindo sair de casa à noite, mesmo que seja apenas para cruzar as grades do edifício e dar uma caminhada na calçada. Pronto, estaríamos defendidos, embora os assaltos a residências hajam aumentado, mas nada é perfeito e não se pode querer tudo neste mundo. Melhor ainda, por que não se regulamentam de uma vez profissões como assaltante, traficante e seqüestrador, talvez exigindo diploma, registro no órgão de classe competente e, mais importante ainda, o pagamento de taxas, impostos e multas? Sugiro que se comece logo o recadastramento deles (cadastrados já devem ter sido, ninguém escapa), como base para a nova lei. E, sob leis protetoras por todos os lados, viveremos felizes, sabendo que estamos seguros. Haverá sempre os descontentes que reclamarão, mas lembro que, ao menos por enquanto, a Justiça permite que se xingue juiz de futebol. Aí a gente fica em casa, liga a tevê e dá vazão às energias xingando juízes de futebol. E, para evitar crise nos restaurantes e similares, nova lei nos obrigará a encomendar comida fora pelo menos duas vezes por semana, é simples. A mãe gentil nos dá tudo e não sabemos ser gratos.
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 28/09/2003