O "New York Times", a quinze dias do pleito, declarando-se em apoio frontal a Kerry, mostra ao mesmo tempo o ineditismo de um pronunciamento de franqueza-limite em favor do candidato, e a consciência da gravidade da opção que defrontam os americanos a 2 de novembro próximo. Não é mais, inclusive, o imperativo de uma oposição comum e generalizada ao atual ocupante da Casa Branca que alimenta a candidatura Kerry. A partir dos debates - e o "Times" não esconde até a grata surpresa - impôs-se a intrínseca qualidade do democrata, e a sua capacidade de equacionar fórmulas e programas para o imediato futuro americano.
A dominância das sugestões internas, por outro lado, em nenhum momento retirou Kerry da contundente oposição a Bush na catástrofe iraquiana, sem fugir ao realismo de uma permanência ainda dos Estados Unidos no fulcro da conflagração, acarretada pela cruzada bushiana.
As propostas estão nítidas, não só no que dizem, mas diante dos grupos e classes a que se volta a candidatura Kerry. Vai ampliar o salário mínimo de 5 para 7 dólares a hora, como só aumentará os impostos - e o fará, claramente - para quem ganhe mais de 200 mil dólares ao ano. Confronta o país dos muito, ricos, e ao contrário do contendor, volta-se para a nação que ainda continua remediada e conta com 35 milhões, desamparados ainda de qualquer assistência previdenciária. No mesmo momento em que a mídia mais importante do país marca uma posição sem retorno em favor do democrata, ainda se mantinha uma situação de equilíbrio entre os contendores, numa inércia que poderia levar à consagração final de quem já está no poder e a quem o "New York Times" não chama mais de presidente, mas sim de "ocupante do cargo".
O quadro é ineditamente inquietante quanto a passagem das campanhas à violência das agressões mediáticas e das páginas de programas inteiros de agressão contundente, confiando, num crescendo, que possa chegar ao pré-dia D, furtando-se à réplica do adversário. A mentira dos veteranos, inimigos de Kerry já foi desmascarado repetidamente pelos próprios companheiros de guerra do candidato, e testemunhas de sua ação em combate. Mas os adversários ensandecidos acenam para a brutalidade dos recursos que os republicanos podem trazer à enxurrada das últimas deformações de imagem de Kerry.
Os paradoxos desses dias, na eleição da maior democracia do mundo, só fazem realçar, por contraste, o quanto o Brasil tem, talvez, a legislação mais adiantada da atualidade no coibir a violência eleitoral, reprimir o crime de imagem, processar o abuso econômico. Os Estados Unidos não contam com estes dispositivos de segurança, e os candidatos podem se ver brutalmente devastados pela injúria e difamação na reta de chegada das eleições. Mais ainda, o cidadão se vê cercado agora de uma gigantesca reação internacional, que deixa os republicanos conscientes de que a persistência de Bush se fará num cenário de hostilidade sem precedentes na história do país, hoje hegemônico.
Ponto chave, ainda, da primeira etapa da campanha de Kerry foi o de ter demonstrado que a persistência da opção atual como destino para os Estados Unidos, racha, de vez, a nação. Não se contará mais com a clássica regra do jogo cívico, de passar-se ao dia seguinte do pleito, no reencontro da unidade nacional, e no deixar o conflito eleitoral nos limites da escolha de sempre de uma maior ou menor intervenção do Estado no bem estar do país, do livre jogo das forças do mercado, e da sua justiça darwiniana. O caminho para o clímax para o 2 de novembro torna inequívoca a cara das duas Américas que vão ao confronto. Estão com Kerry, definitivamente, a Califórnia, o Illinois, o Massachusetts e o Estado de Nova York, onde se consolida a área ao mesmo tempo mais próspera e progressista do país. O arco de apoio a Bush sai do sul texano e o de toda clássica área reacionária, desde os tempos da Guerra de Secessão, e dos Estados até hoje menos desenvolvidos.
A geografia reflete as polarizações de apoio e rejeição de classes sociais e a repulsa de grupos a Bush chega ao extremo na área universitária. O que parece novo, após o gesto do "New York Times", ao lado do "Washington Post", ou do "Boston Globe" é o jogar o peso do ator, opinião pública - no que ela representa de sentimento médio da nação - em favor de um dos candidatos. Não é mais um órgão, é toda uma cadeia da respeitabilidade instintiva da imprensa que opta, e o faz na sensação de que não pode ficar neutra neste embate, e torna o veículo de uma opinião respeitável o protagonista deste sentimento. É como se a cidadania se corporificasse, falando por quem não se define por interesses particulares, nem em adesões concretas aos jogos de poder.
Esta movimentação inédita até onde, entretanto, mudará a constante cultural tão inquietante nos Estados Unidos em que, pelo menos, 35% da sua população fica em casa no dia do voto? É da adereção mudança deste percentual, possivelmente, que se faz a diferença entre as duas Américas.
No sentimento tradicional, de persistir-se na indiferença ao voto, ganha quem está aí. A opção por Kerry soma a cidadania indignada à da mobilização etária e por uma vez, as escolhas que se resignam ao "tudo, tudo bem", dão no que aí está. Paradoxalmente, Bush pode ainda se beneficiar do sentimento difuso da "civilização do medo" em que quer manter o país de após o 11 de setembro. O perigo maior é o de se somar-se o absenteísmo político americano, ao não se pagar para ver como sair do pavor de outra queda das torres.
O eleitorado de Bush é o duplo prisioneiro da preguiça cívica e do pânico conformado. Quer, na Casa Branca, quem simplesmente o administre. Não um Presidente que abra uma opção de futuro. O país que lê o "New York Times" não elege o homem do Salão Oval. Mas pode impedir um feitor do medo, confiado no encruamento da resignação tão surda quanto egoísta da nação emparedada em sua hegemonia.
Jornal do Commercio (RJ) 22/10/2004