As declarações do começo da semana de Berlusconi a Bush foram peremptórias. A Itália sai, de vez, da ocupação do Iraque, em conseqüência do morticínio pelas tropas americanas do policial-chefe Calpari que cobriu com seu corpo as balas disparadas contra o carro que conduzia Sgrena ao aeroporto. O reconhecimento é claro, de parte do primeiro-ministro. Não podemos mais afrontar a opinião pública que deu honras de herói nacional frente ao Tabernáculo da Pátria, em Roma, ao protetor da refém italiana. É como se na percussão direta de um repúdio de fundo da dita "Velha Europa" se partisse o último elo, ainda, do liame do continente com a cruzada irrompida pelo 11 de setembro.
Neste começo do segundo mandato de Bush, definem-se mais e, de vez, os cenários de fundo em que o antigo parceiro está disposto a apostar num outro Ocidente, para confrontar a hegemonia americana, referendada pelo maciço apoio dos seus 59 milhões de votos. Na mesma ida às urnas organiza-se a União Européia para passar a plebiscito a sua Constituição. E os primeiros vaticínios demonstram de que maneira, e a partir da França, o sim à Carta irá aos 56%. Mas, sem dúvida, 68% do país sabe que os pactos de Maastricht e de Bruxelas não têm volta.
O novo corpo político continental que se vai ratificar não deixa também de apresentar vários anéis de adesão, círculos a meio caminho, até chegar a este eixo final, onde são Paris e Berlim que asseguram o ultimo pólo no caminho da diferença dentro do Primeiro Mundo. Não se interrompe o prazo médio e largo do movimento, começado a meio século pela, hoje, já quase mitológica Comunidade do carvão e do aço, pensada por Jean Monnet.
Não resta dúvida de que a Europa dos 16 teria mais consciência de sua identidade, que a de, agora, dos 25, onde os governos do Leste Europeu mostram profunda fidelidade aos Estados Unidos, como se num comportamento de quase satelitização, que fizesse meia volta volver sobre Moscou. Nem se subestimará a retração, ainda, da Inglaterra ou da Suécia que não entraram na comunidade da moeda que hoje leva o euro, inclusive, a peso tão dominante sobre a velha soberania do dólar em além-mar.
Reunião da Opep
O outro Ocidente, mesmo que espere ainda a ratificação popular, já pesa no pós-Iraque, numa conformação mundial que vem sofreando as projeções de um equilíbrio urbi et orbi a partir, estritamente, das diretrizes de Washington. Beneficiada pelo apoio conjunto da Europa Ocidental, aí está a se abrir em Teerã, pela primeira vez depois da revolução de Khomeyni, uma reunião do porte da Opep para decidir dos novos fornecimentos do petróleo ao Ocidente, num incremento de mais meio milhão de barris ao dia, e no esforço conjunto de Iran e da Arábia Saudita.
É com o beneplácito da França, por outro lado, após o assassinato do primeiro-ministro libanês, aliado de Chirac, Rafik Hariri, que se dá a desocupação do país pelas forças sírias, a evitar um novo "efeito dominó" do Iraque, na mais frágil e instável das áreas políticas mundiais. O eixo Paris-Berlim, entretanto, não perde tempo em manter-se na iniciativa do que seja uma liberdade de movimentos ainda da Velha Europa, diante dos possíveis reequilíbrios bélicos universais, com vista à crescente carta autônoma com que a China emerge nestes tempos de hegemonia.
A Alemanha unilateralmente tomou a decisão de levantar o embargo de fornecimento de armas a Pequim, jogando com o amortecimento da proposta de integração de Taipé ao continente. A questão reacendeu, como primeira fala do presidente Hu, ao assumir, com o poder que lhe faltava, a pasta militar ainda em mãos de seu predecessor, Jiang Zemin. Mas significativamente o arremedo bélico de Pequim encontrou também respostas suasórias de Washington como se, afinal, o velho prurido do reclamo da independência de Taipe cobrisse negociação à vera, e a largo prazo, para testar a coexistência com a hegemonia.
Os antigos países do "eixo do mal" parecem ter cenários diversos do que seria o vaticínio implacável, começado com a invasão do Iraque. No arco asiático entra em jogo o outro Ocidente, armando a China para a eventualidade de um desforço do Salão Oval com Piong Yang que, afinal, rompeu os protocolos do silêncio e declara possuir a bomba. Na fala à Comissão de Relações Exteriores do Senado, Condoleeza Rice não deixou dúvidas, por outro lado, de ter aumentado a lista do "eixo do mal", de 4 para 6 novas nações, na mira. A Síria já foi claramente constituída em perigo americano no discurso do State of the Nation de Bush.
A Velha Europa nestes dois meses já mostrou a que veio, como fator interferente do que poderia ter sido o saldo de contas a pagar, num segundo mandato Bush democraticíssimamente credenciado para ir adiante, e logo. Não faz por menos ao propor para a presidência do Banco Mundial, Wolfowitz, o próprio estratego da hegemonia e da deflagração da guerra do Iraque. O povo que dissuadiu, em Roma, Berlusconi de insistir na cruzada é o mesmo que em toda Europa assentiu a convicção de que o mundo do segundo Bush é também, e de vez, o de dois Ocidentes.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 18/03/2005