Não se esperava viesse a candidatura Kerry morrer na praia, como a de Dukakis - quem se lembra dele? - o outro bostoniano que competiu com o primeiro Bush. Não se vai aceitar, é claro, este fracasso antecipado, mantendo-se uma última esperança nas arquibancadas de todas as periferias mundiais. Mas o inconformismo, por uma vez, com a prevista fatalidade de um Bush bis, é de um racha a prazo indefinido na opinião pública americana, sem arnicas ou sinapismos para curar a cisão de um país, refeito e convenientemente desmomoriado para os próximos quatro anos. Nem poderemos alimentar uma mudança dramática nessas últimas semanas. O desconforto inevitável é o do descolorido da reação de Kerry à queda de sua superioridade nítida de ainda dois meses. Não respondeu, à hora, a brutal demolição de imagem feita pelos adversários. Permitiu se cristalizasse o estereótipo de um candidato indeciso nas tarefas públicas, consoante seus antecedentes no Senado. Mas a opinião pública não concebe que um presidente não pode refletir sem parar para decidir quando puder.
De toda forma Kerry constribuiu com um diagnóstico definitivo sobre o que nos aguarda, a mostrar a quebra dos Estados Unidos em dois hemisférios, e é longa a marcha que implicará a volta do país de Roosevelt, Kennedy ou Clinton à nação que reforçará pela reeleição de Bush a radicalidade do seu desempenho, tão onipotente quanto seguro do que fará no mundo de após o 11 de setembro.
As horas imediatas à Convenção Republicana empinam uns inéditos 11 pontos de diferença pró-Bush contra Kerry. É um primeiro travo e gosto de cinza dos democratas frente ao ataque anunciado, de maior habilidade contra o candidato rival. É como se, desde então, uma América hegemônica crescesse dentro da pátria de Jefferson e Roosevelt, e não pestanejasse no trazer um radicalismo de direita e suas convicções inequívocas ao comando do mundo.
A sagração da candidatura Bush evidenciou este propósito sem descanso, por onde passam a cruzada do Ocidente, as guerras preemptivas, a modelização dos vencidos e o preparo sem quartel para a luta perpétua contra o terrorismo. O presidente prometeu ainda do bom e do melhor para a América, que já folga no mercado, não a que deixa fora das garantias mínimas do emprego e da aposentadoria quase 50 milhões de seus habitantes. O país da nova ownership que prega o atual inquilino da Casa Branca é de quem já é sócio da concentração crescente da riqueza do sistema. Volta-se à expansão dos aparelhos militares, à melhoria dos recursos do Patriot Act, e à afirmação absolutamente unilateral do comando do globo, a se defender contra um terrorismo visto como ameaça universal e perpétua. Este, o desenho de Bush, procurando o massacre de Kerry. Seria incapaz de exercer, como o atual presidente, esse comando das Forças Armadas em que se transforma objetivamente o perfil e a ação dominante de quem vá ao Salão Oval. A palavra é de raiva e violência contra o democrata, para dar o recado de que não haverá tão cedo volta ao ninho pelas Forças Armadas: de que só cresce o perigo da Al-Qaeda e que a prosperidade americana não se apartará de um mundo do medo.
Inquietante foi a força da vaia repetida às Nações Unidas na Convenção, a não deixar dúvidas sobre a impossibilidade de retorno da Washington republicana a uma entente multilateral sobre a paz do globo. E é um Bush investido de uma tarefa transcendente o que foi objeto de uma consagração religiosa, quando o governador Pataki, de Nova York, saudou-o como o candidato de Deus, para governar o primeiro país do mundo. Ou a ''nação moral'', como repete o breviário cívico de Bush, ''que sabe onde está o bem e não tem receio de chamar o mal pelo seu nome''. O disparo republicano foi para além de toda esperança de se confiar numa derradeira chance de Kerry.
Já foi inédita e inquietante, fora do Madison Square Garden, tanto durou a Convenção, a resposta da América liberal, que está chegando a características inovadoras da resistência, e do protesto, a crescer nas próximas semanas. Muito da pregação de Kerry já vai a esse preparo para um momento sombrio, exposto o país a uma cisão inédita, que não se fechará após a campanha.
Tal como não tem os Estados Unidos a experiência de uma guerra sem fim, não se sabe o conformismo dos democratas após o bis de Bush. Para onde vai a nação neofundamentalista no comando do Ocidente? Interrogam-se os latinos nos Estados Unidos, ora ameaçados por uma primeira discriminação dos chicanos, os afro-islâmicos trocando o seu sobrenome, os imigrantes a passarem, enfim, as muralhas dos aeroportos de chegada. O importante, e já o viu tão bem esta liderança de Kerry feita para o longo prazo, é que, por uma vez, uma América polarizada à direita a que vai ganhar nas urnas. A outra terá a atenção do mundo para recomeçar as tomas de consciência, as mobilizações a longo prazo para que vingue de novo a maratona de um Luther King, e o direito a confiar no seu sonho.
Jornal do Brasil (RJ) 22/9/2004