Por falta de tempo e um pouco de falta de saúde, ainda não me dei ao respeito de ler o penúltimo livro de Chico Buarque.
Acontece que eu dei um giro comprido por Budapeste, pela terceira vez eu fui à bela cidade cortada pelo belo Danúbio, que nada tem de azul, e voltei de lá com uma incerteza a menos.
Sempre considerei que as cidades mais bonitas da Europa Central eram, pela ordem, Praga, Viena e Budapeste. Bem verdade que, quando fui pela primeira vez à capital da Hungria, os rescaldos da Segunda Guerra Mundial e da ocupação soviética eram recentes.
Praga me enfeitiçava pelos detalhes, pelos closes de suas fachadas e perspectivas, a música de Smetana, o preto e branco de suas vielas kafkanianas, os labirintos de Joseph K., o castelo impossível a que nunca se chega.
Viena era Viena, monumental em sua frustração de não ser mediterrânea, apesar de Marco Aurélio, para garantir as fronteiras do Império Romano estendidas por Tibério, ter morrido às margens do mesmo Danúbio que não corta a cidade, como em Budapeste, mas passa ao redor, sujo e inglório.
Além da arquitetura e do urbanismo de gênios mediterrâneos, como Borromini, rival de Bernini, que havia feito metade de Roma.
Evidente que Viena é outra coisa, culturalmente e até diria espiritualmente. Como esquecer aqueles túmulos cenográficos onde estão Beethoven, Mozart, Schubert, Brahms, as sinfonias de Mahler, as valsas de Strauss e Lehár, o diálogo de Orson Welles e Joseph Cotten em "O Terceiro Homem", na roda-gigante do Prater, o endereço de Freud na Berggasse 19?
Mas Viena, com todo o seu esplendor urbanístico e cultural, não tem panorama nem a visão em grande-angular de Budapeste, que nesse sentido só tem rival no Rio de Janeiro, feio em detalhes, mas soberbo em suas linhas quase infinitas.
Colocadas em escala natural, em cima de imensos carros alegóricos, o Rio e Budapeste, apesar das diferenças de estilo e de atmosfera, seriam imbatíveis em qualquer desfile carnavalesco ou cívico.
Na minha primeira viagem à cidade, hospedei-me num velho hotel do século 19. Na segunda, um compromisso de trabalho colocou-me numa boa suíte no Hilton, antigo convento ao lado do Bastião dos Pescadores, na parte mais alta de Buda, de onde se vê a maravilhosa curva do Danúbio cortado pela ponte das Luzes vigiada por seus leões apaniguados.
Nesta terceira visita, fiquei mais embaixo, naquele trecho de hotéis modernos e americanizados, em Peste mesmo, apreciando a cidade de baixo para cima, um "lungo mare" mais feérico do que o "lungo Arno" de Florença, o "lungo mare do Tevere" de Roma.
A assombrada integração do Danúbio com a cidade, com seus monumentos iluminados à noite por uma luz que parece nascer das próprias pedras de sua fundação e que se espalha pelas águas do rio que refletem, amarelados e calmos, as fachadas estendidas nas duas margens.
O Palácio Real, no alto de Buda, ou o fantástico Parlamento, lá embaixo, ao nível do rio, talvez o estilo "bolo de noiva" mais impressionante do mundo desde que os gregos, mediterrâneos de fundação e vocação, criaram as suas colunas nuas e as suas estátuas de olhos vazados.
Para um judeu-cristão-ateu, cuja ambição foi ouvir o gregoriano e mais tarde Palestrina, cujo conceito de virtude e vício se misturava em frases soltas ouvidas ou lidas por aí e cujo patamar de beleza física eram as pernas de Cyd Charisse (eu não peguei as de Mistinguette), Budapeste me reconciliou com a esplêndida mediocridade humana que pode fazer deste mundo alguma coisa que ainda valha a pena, enquanto há tempo.
Folha de São Paulo, 5/8/2011