Gosto de recorrer à ficção para comentar a realidade, sem explicá-la, é certo, mas para lembrar aquele trecho do Eclesiastes bastante citado, de que nada de novo existe sob o sol e que tudo é vaidade e aflição de espírito.
Ontem, lembrei Tartarin de Tarascon, hoje lembrarei uma cena de "Madama Butterfly". Pode parecer uma alucinação do cronista encontrar nexo entre o drama nacional que estamos vivendo com o drama da japonesinha que casou com um oficial da Marinha dos Estados Unidos.
Para casar, Cio-cio-san renunciou não apenas à tradição de seu país e de sua classe mas à própria religião, adotando a crença ocidental de seu provisório marido. Logo após o casamento, surge o tio dela, um bonzo ortodoxo e furibundo, amaldiçoando a sobrinha em seu nome, em nome da família e de todo o Japão com seus milênios de história. O bonzo tanto se exalta em sua abominação que Pinkerton, o oficial norte-americano e recém-marido, o expulsa gritando: em casa minha, nada de bonzos nem de bonzerias!
Pulando de Nagasaki, onde se desenrola a ópera de Puccini, para Brasília e para o Brasil em geral, o que temos de bonzos e de bonzerias não é mole. O bonzo-mor, por direito de função e gosto, parece que é o próprio Lula, que grita e amaldiçoa a oposição, a elite e, de quebra, os corruptos dos outros partidos que não o dele.
As bonzerias estão aí, na TV, nas revistas e nos jornais, variando de grau, mas não de gênero. Outro dia, dois bonzos iam se atracando no plenário da Câmara. Um bonzo movimenta-se nos bastidores, ameaçando uma bonzeria que o livre da cassação. Bonzos à espera de novas bonzerias estão aguardando hora e vez.
Na ópera acima lembrada, é impressionante a chegada do tio-bonzo, que, antes de entrar em cena, começa a gritar das coxias: "Abbominazione!". Aí entra uma diferença fundamental. Quem clama contra a abominação somos todos nós.
Folha de São Paulo (São Paulo) 13/10/2005