É hoje. Não sei quanto a vocês, mas já cumpri o dever. Acordo cedo, sou ansioso e, possivelmente, terei aparecido em minha seção até antes dos mesários. E espero que ninguém esteja me lendo na fila, não só porque as filas hoje são raras e rápidas como porque ouvi falar que as autoridades estão muito rigorosas e qualquer observação que eu publique aqui poderá ser levada na conta da nefanda prática de boca-de-urna, que, aliás, como vocês devem ter visto ou verão hoje, foi praticamente abolida. Não quero cometer nenhuma irregularidade eleitoral. Sei que isso não tem importância e que basta pedir desculpas depois, mas assim mesmo é mais seguro não facilitar, porque não sou presidente nem tenho filha delegada, de maneira que me apresso em dizer que não estou pedindo que vocês votem em partido ou candidato nenhum, não estou sugerindo que votem em branco ou anulem o voto e, enfim, não estou dando palpite eleitoral. Isto é especialmente importante para o pessoal das entrelinhas. Eles são danados, peguei muita experiência com a elite deles durante os tempos da censura que não volta mais (figas, batidas na madeira etc.). Eles são capazes de ler “saia” onde está escrito “calça”, contanto que achem uma boa entrelinha. Mas não há nenhuma aqui, garanto a vocês.
Não vou nem dizer com que corrente me identifiquei, entre as diversas que observei nos dias anteriores a hoje. No máximo, conto que me incluí entre os que decidiram comparecer às urnas. Mas a variedade de categorias e subcategoria desafia qualquer tentativa de classificação mais apressada. Na minha categoria geral, por exemplo, pude arrolar, assim ao aligeirado correr da pena no boteco, pelo menos as que se seguem: os que vão e votam, que às vezes parecem em minoria; os que vão, mas votam em branco; os que vão, mas anulam (não adianta, que eu não ensino como se anula, não me pegam com facilidade); os que vão, mas anulam ou “embranquecem” o voto para vereador ou para prefeito; os que vão reclamando que só vão porque é obrigatório, mas na verdade não querem é admitir que já passaram dos setentinha e não são mais obrigados; e os que garantem, não tenho nada com isso, que arrumaram maneiras para embananar ou incapacitar os circuitos eletrônicos das urnas, que já seriam fajutadas de qualquer forma e é tudo uma farsa etc. etc.
Minha sólida formação política, pois a provecta idade já me inclui no seleto e, lamentavelmente, cada vez mais reduzido grupo que votou para presidente antes de 64, me impediu de aceitar os esquemas mais sofisticados. E manda a honestidade confessar que me faleciam recursos para partilhar dos escalões mais altos desses esquemas. Ou seja, não foi só a idade, foi o numerário também, não esqueçam que minha profissão é as letras, sim, mas não de câmbio. O mais sofisticado de que me falaram (e nem chegaram a pensar em me convidar, também não são malucos) foi fretar um jato para passar o fim de semana nos Estados Unidos, onde justificaríamos a falta de voto no consulado mais à mão. Bem menos ambiciosos, outros ainda organizaram caravanas para cidades serranas ou litorâneas, em que, formulários já preenchidos, apenas passaríamos por alguma agência postal. Sairíamos na sexta, coisa e tal, teríamos um belo fim de semana e não seríamos cúmplices dos governos que virão. Claro que seríamos, mas a turma não pensa assim, o que tem de gente “apolítica” neste mundo é um espanto.
Quanto aos candidatos a prefeito, aqui no Rio ou, mais honestamente, no Leblon, pois me falta conhecimento para falar de qualquer outra área além da meia dúzia de quarteirões que constitui meu território carioca, a verdade é que não vi ninguém cego de amores por ninguém. Até mesmo amigos que se engajaram nas campanhas de um candidato ou outro não pareciam muito empolgados. Um dos renomados médicos que freqüentam meus ambientes chegou a declarar que, em questão de alcaidaria, o Rio de Janeiro padecia de visível disfunção erétil. “Precisamos de um Viagra cívico!”, concluiu ele sua explanação. “E na veia!” Não sei, não entendo dessa intricada matéria, mas de fato não lembro ter visto ninguém entusiasmado com candidato algum, nem mesmo um bom bate-boca amistoso, era tudo na base do “é, eu vou nesse porque já disse que ia, tudo bem, e tu vai nesse, também tudo bem - o chope hoje está até melhorzinho, tu viu o Botafogo?”
Em São Paulo, com toda a certeza, a situação está bastante mais movimentada. Não porque o presidente pediu voto (até porque não pediu, tiraram do discurso e os historiadores futuros bem que poderão discutir o assunto e a confiabilidade das fontes), sério mesmo, mas porque a disputa está muito mais acirrada, boa de assistir. E saiu até movimento sério para um protesto geral, através da anulação do voto. Em Salvador, onde já votei e onde, dizem as más línguas (esse povo é muito maledicente, só fica reparando essas besteiras), a contribuição do presidente para a campanha do candidato do PT, diferentemente da de São Paulo, foi convidar o dr. Antônio Carlos para jantar, não sei se a disputa está pegando e se, no frigir do acarajé, não haverá surpresas.
A verdade é que estou arrependido de haver trocado meu domicílio eleitoral. Devia ter continuado a votar em Itaparica, pelo menos era uma desculpa para tirar uns dias de folga, consultando as bases antes de escolher um candidato. Mas troquei, agora dá muito trabalho fazer nova alteração. Não, fico votando aqui pelo Rio mesmo, partilhando da mesma animação que meus atuais concidadãos cariocas. Animação, afinal justificável, não devemos ser céticos ou cínicos quanto às mudanças que trará a posse dos novos eleitos, quem quer que venham a ser eles ou elas. Amanhã, podem ter certeza, será outro dia. Ou seja, segunda-feira, claro - que foi que vocês pensaram?
O Globo (Rio de Janeiro) 03/10/2004