O fracasso da eleição de Greenhalgh, no zênite do poder do PT, só demonstrou, ao mesmo tempo, como as raízes da força de Lula permanecem intactas por fora de qualquer agenda clássica de respostas à expectativa popular. Nos mesmos dias em que o PT foi varrido da Mesa da Câmara, continuam os percentuais do apoio básico ao presidente. Mais ainda, reforça-se a conclusão peremptória: continua imbatível para um segundo turno.
O Lula que recebeu Severino no Palácio teve gestos muito mais de um padre eterno, compassivo e imutável, do que de um reajuste de discurso ou de uma enturmação com os vencedores, saídos do porão do sistema. Não é vitória de oposições concertadas, nem pode ir ao superconchavismo, apregoado por Garotinho, como Peter Pan da desdita. O farrancho de Severino não abala o pedestal em que Lula assentou-se sobre o inconsciente coletivo do País, e que continua intacto após o vagalhão que o empurrou ao Planalto.
Por certo, no plano do jogo imediato, mudam-se as regras e vão se afinar táticas, como manda a aparente calamidade. Mesmo porque o fisiologismo destampado contamina em vírus incontrolado. Já se associam presidentes da Câmara Alta e Baixa, para dar toda força a esse controle do Legislativo, independente, por uma vez, de qualquer responsabilidade da representação que os levou às suas poltronas. Seja ou não, como querem tantos cronistas, o pior Congresso da última trintena, adoeceu agora dos fungos do seu próprio hábitat na escuridão das Casas. E o que querem os vencedores da madrugada é absolutamente intransitivo e impermeável à demanda de qualquer corrente ideológica que se instalasse no Planalto.
Lula chega ao segundo tempo com o donaire de quem sabe a hora da desova da esperança do seu povo. Mas correu o risco de confrontar o Legislativo antes de servir, de fato, o prato da mudança. Bem que intentou agora reforçar o primeiro recado com uma candidatura puro-sangue como a de Greenhalgh. Mas encontrou a volta do fisiologismo ao estado de natureza em todas as bancadas, no botim das vantagens imediatas, até mesmo no PT.
A perda da guarda governamental, possibilitada pelo deslate irrecorrível de Virgílio Guimarães, criou à undécima hora a revolta da bolsa de favores e privilégios, já atingida por um começo de resistência do partido diferente, mas não tanto, ainda. O Executivo trancou mais o orçamento ao brinde clientelístico, conteve o conchavo na tripulação da máquina pública. Começava pelo PT o esporão de quebra do fisiologismo de todo o tempo. Mas esquecia-se de que, nos seus próprios quadros, avançou a contaminação. Nem por coincidência histórica os 300 votos contra Greenhalgh mostraram o mesmo tamanho da denúncia dos picaretas em que Lula, há anos, já via o tamanho do subsolo do Legislativo, frente aos comprometidos efetivamente com a representação popular.
Linha divisória
Todo voto dito secreto em Severino foi o da rebelião, às claras, contra o mau trato orçamentário, ou a falta do atendimento do favor político ou do emprego. O Executivo de Lula alterou o pacto implícito da estabilização perene do clientelismo na coisa pública brasileira. A limpidez da candidatura Greenhalgh criou a linha divisória do Congresso para si, ou para o povo. O sucesso de Severino é de uma vitória de Pirro. Deixará às escâncaras o que serve o Legislativo, com duríssimo passivo nas urnas, tanto prospere o Governo Lula, já, numa relação direta com o eleitorado de que pode ainda tirar partido nos próximos meses.
O presidente, aliás, desde agora, soube separar o joio do trigo, como o entendeu o seu eleitorado de base, quando se procurou atingi-lo na madrugada descida aos porões da Câmara. Visava-se o partido e não o Governo. E, neste, ficava indene a figura do presidente. Mas, atenção, o fisiologismo no poder tem a regra dos somatórios irresistíveis, vírus tão benigno quanto envolvente. Não enjeita o seu grão em grão e aí está Severino colado a Renan, na esperteza das novas lideranças, e na singular mediação do alagoano de sobrevivência a todos os infernos políticos. Mesmo porque, entre Severinos, podem-se propor conchavos como contraconchavos nos adesismos absorventes. Por que não, por exemplo, como já sugerido, inverter-se o processo legislativo como permite a Constituição, e passar o Senado a desimpedir, de saída, as tramitações, reduzindo a capacidade de manobra do primeiro Severino? Não é outra a antevisão deste poder multiplicado que já fez de Renan o porta-voz frente a Lula das novas demandas à reforma ministerial, tal como alinhavado ainda antes da catástrofe começada no Dia dos Namorados.
A manutenção, por outro lado, em piques novos, do prestígio presidencial nos dias subseqüentes à pancada, esvaziou qualquer poder de barganha para as eleições de 2006 por uma oposição que se quisesse titular da vitória intransitiva do porão Legislativo. Saem, PFL ou PSDB, de mãos abanando no entrevero, sem condições de apontar o polegar para baixo nas chances, a prazo médio e longo do partido. Severinos, a Severinos se somam logo, e vão todos com sua fatura exata ao mesmo prato da balança. Lula, por outro lado, não tem as suas contas feitas dentro do sistema. Nem é do Congresso, e especialmente deste, que dependerão os seus votos para as próximas urnas. A Casas exauriram o seu poder de negociação mostrando que são 300 os deputados de fatura e amuo de custo líquido, enfim. Nenhuma carta na manga ou adição inesperada de pressões daqui para diante. Um Severino, já se sabe o quanto pode amolar muita gente: dois Severinos não amolam muito mais.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 04/03/2005