A Academia Brasileira de Letras (ABL) realizou mesa-redonda voltada para celebrar a decisão do Supremo tribunal Federal (STF) que afastou a exigência, contemplada no Código Civil, da autorização prévia de um biografado para a elaboração e a publicação de sua biografia.
A ABL tem legítima interessa na matéria. Inúmeros acadêmicos se notabilizaram por biografias que escreveram, a começar por Joaquim Nabuco, com seu Um Estadista do Império.
A biografia, como apontou o crítico e acadêmico Álvaro Lins, é a expressão de uma fusão de gêneros. Tem componentes de história e de literatura. È criação, mas não é criação romanesca. Para ser bem-sucedido, preciso ter arte de expressão e lastro de documentação.
Luis Viana Filho, acadêmico que fez a biografia o campo por excelência de sua atividade literária, refletiu sobre a verdade na biografia. Apontou que a biografia antiga, à maneira de Plutarco, articulava virtudes e se enquadrava na tradicional justificativa da literatura pelos critérios externos de edificar e instruir.
Entretanto, como expõe Antonio Candido, não é mais esta a visão moderna da literatura, que confirma e nega, propõe e denuncia, não corrompe nem edifica, ao tratar no romance e na poesia de instabilidades e dilaceramentos inerentes à vida humana.
É nesta moldura que se insere a biografia moderna que requer, segundo Viana Filho, “intrepidez” na procura da verdade e não pode “perder o sentimento de quanto é complexa a alma humana”. Aponta, entre os obstáculos em alcançar a verdade, a multiplicidade dos pontos de vista no estudo e na interpretação da vida de alguém. Indica, ainda, o uso da conjectura para imprimir cunho de “vida”, de realidade, a uma biografia que repousa naturalmente, para ser verossímil, em determinados elementos conhecidos.
São, assim, inevitáveis as divergências entre os que tentam estudar qualquer vida. Por isso não existe “coisa julgada” em matéria de biografia e o biógrafo, nas palavras de Viana filho, “trabalha sob o signo do seu tempo e sob as inspirações de sua época”.
A ABL, em razão d seu interesse cultural na matéria, participou, como amicus curiae, da audiência pública promovida pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 4.815, para interpretar, conforme e Constituição, os artigos 20 e 21 do Código Civil.
A ABL acredita na preeminência da tutela da política da cultura. Na linha de Bobbio, batalhou pela defesa das condições da existência e do desenvolvimento da cultura, o que requer a preservação não policiada da liberdade, o que pressupõe, por sua vez, ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica, de comunicação, independentemente de censura ou licença, como reza o artigo 5-IX da Constituição federal”. O espaço da criatividade para um gênero como a biografia passa pelo o acesso à informação e pela liberdade de investigação como parte do direito da liberdade de opinião e expressão, que inclui o direito de procurar, receber e transmitir informações.
Em síntese, a elaboração de uma biografia requer liberdade na construção de uma narrativa que seja a expressão e a projeção de uma experiência humana e de seu tempo – com seus altos e baixos, luzes e sombras -, liberdade não impedida ou tolhida por uma autorização prévia, sobre o que é verdadeiro bom ou belo.
Esse pleito foi atendido, por unanimidade, pelo STF, que concluiu pela inexigibilidade “de consentimento de pessoas biografadas relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, no caso de pessoas falecidas)”.
Isso não exclui, na tutela do bloco dos direitos da intimidade, da vida privada e da honra e da imagem das pessoas, a apreciação a posteriori de eventual excesso gerador “de dano decorrente da circunstância de ter sido ultrapassada esfera garantida do direito do outro”, ou seja, responsabilidade penal (na hipótese de calúnia, difamação, injúria) e civil (em caso de dano material ou moral).
A ponderação da Adim 4.815, em prol da preeminência da liberdade de expressão, comporta analogia com a decisão do STF no caso da Lei de Imprensa ao deliberar a não recepção em bloco da Lei nº. 5.250 de 1967, quando também entendeu que não era necessária uma Lei de Imprensa para assegurara os direitos de personalidade referentes à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem da pessoa. Considerou autoaplicável o direito constitucionalmente, “qualquer lesão ou ameaça a direito” comporta apreciação pelo Poder Judiciário.
Na mesma linha, não acredito ser necessária à lei especial para tratar matéria no caso de um biógrafo ultrapassar a esfera garantida do direito de um biografado.
Nas biografias, o mais relevante para um biografado é a tutela da verdade factual, na linha de Hannah Arendt: fatos e eventos efetivos, cujo oposto não é o erro, a ilusão ou a opinião, mas sim, a falsidade e a mentira. Um biógrafo pode ter perspectiva distinta do biografado ou de seus familiares, mas não pode tocar e impugnar matéria factual. Aí, o primeiro remédio é o direito à resposta, pelos caminhos previstos pelos Código Penal e de Processo Civil.
A verdade da biografia e seus desafios transitam, para recorrer ao que escreveu Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, pelo fato “Que contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balance, de se remexerem dos lugares”. Concluo com ele: “Viver é perigoso” para todos cuja vida privada e íntima está muito mais ameaçada pela transparência imposta pela irradiação erga omnes da era digital do que pela ocasional má-fé de um biógrafo.