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Biografia da Moça

 

Com 20 anos, era esposa de um ciclista búlgaro e viúva de um fabricante de cosméticos. Tinha muito dinheiro e era bonita, ao contrário do ciclista, que era pobre, feio, mas campeão da Europa.


Campeão que se preze dura pouco: derrapou numa curva e caiu no Adriático. Morreu afogado e a bela biviúva fez as malas e retornou ao Atlântico. No navio que a trouxe para o Brasil, recusou casamento a um pastor protestante nascido na Holanda, mas quase aceitou a mão generosa de um venezuelano que tinha poços de petróleo e uma esposa esperando no cais.


A ideia de escrever suas memórias passou-lhe pela cabeça e foi alimentada por um cronista social. Mas o editor protestou, ninguém escreve memórias aos 22 anos, nem mesmo na qualidade de viúva de ciclista búlgaro afogado no Adriático.


Mas o cronista social não desistiu da ideia e traçou um roteiro para a moça biviúva. O roteiro incluía: um industrial paulista, um poeta concreto, um acionista da Vale do Rio Doce e um perito em assuntos afro-asiáticos.


Isso poderia distrair a biviúva por uns dez anos, mas acabou resumido a apenas dez dias: ela avacalhou com o roteiro arranjando um raro espécime que era tudo isso ao mesmo tempo: industrial paulista, poeta concreto, acionista da Vale do Rio Doce e perito em assuntos afro-asiáticos. Isso além de outra qualidade não bolada pelo cronista social: viciado em tóxicos e em taxidermia.


Disso tudo, ela adquiriu hábitos salutares. Fez um poema concreto que Ferreira Gullar espinafrou com veemência, ganhou um teco-teco paulista, comprou ações da Vale e mandou cobertores para distribuir entre os pobres de Gana.


Compareceu à polícia para denunciar o cronista social que lhe tomara dinheiro e resolveu fazer um retiro espiritual com as freira agostinianas. Interrompeu o retiro espiritual depois de um sonho estranho, em que lhe aparecia um velho parecido com o Leonardo da Vinci a lhe fazer propostas indecorosas. Enviou correspondência pedindo conselhos a Nelson Rodrigues.


Nelson a mandou tomar banho no Adriático ou em qualquer lugar e ela então descobriu que há muito tempo não casava com ninguém e escolheu um noivo encontrado na Galeria Alaska, de copo na mão, tão bêbado que se fazia passar por deputado estadual.


Era deputado estadual mesmo e casaram-se na Candelária. O governador compareceu e mandou flores, o líder da maioria foi um dos padrinhos e um bispo progressista abençoou os nubentes, prenunciando-lhes uma vida cristã e santificada por muitos filhos.


Até que viu a foto de Tarcísio Meira nos jornais e teve saudades de seu ciclista búlgaro. Antes que sua vida estivesse santificada por muitos filhos ou por qualquer filho, deixou o deputado estadual em plena campanha pela deputação federal e foi viver sozinha, ao lado de um salão de ioga, onde aprendeu a controlar o diafragma, a paralisar a circulação sanguínea nas frontes e a pensar em Hermógenes -o grande mestre que presidia o grupo iogue.


Fugiu com Hermógenes certa tarde e foram para Barra do Piraí, onde Hermógenes dava consultas astrais e curava embriaguez de maridos que sovam esposas. Ela cozinhava, arrumava a casa, lavava a roupa e, nas horas vagas, era sovada por Hermógenes, que na realidade era apenas Deoclécio da Silva, baiano, 35 anos, bígamo e ébrio contumaz. Que a fez mais desgraçada por mais ou menos dois anos, sendo um deles bissexto.


Aprendeu com Hermógenes alguns truques de cartas e resolveu tentar uma carreira solo em Paracambi e, mais tarde, em Paty dos Alferes, onde lia o destino dos outros e se esqueceu de ler o próprio destino. Foi descoberta pela equipe do "Fantástico", que a apresentou como a vidente que previra a morte de John F. Kennedy.


Até que, um dia, fez 45 anos e decidiu dar um rumo à sua vida, pois todas as experiências e embrulhadas que passara não a fizeram feliz.


Desanimada dos homens e das pompas deste mundo, tomou o Santo Daime, mas não tomou juízo suficiente: voltou para a Europa e ficou noiva de um ciclista que nem era búlgaro nem campeão de nada, mas teve o mesmo destino. Morreu afogado no Adriático. No momento, está disponível.


Folha de S. Paulo, 7/5/2010