Ao cair do pano da eleição apocalíptica, Bin Laden interveio no intento de mudar a escala do jogo. Não foi mais um tira-teima, entre duas visões do império americano. O terrorista oferece um script para repartir o futuro. Não sem insinuar a diferença entre os contendores e oferecer ao liberal o beijo da morte de sua proposta, alçando-se ao perfil de estadista, no redefinir os rumos do mundo após o 11 de setembro. É a primeira vez, afinal, que se dirige ao Ocidente após a catástrofe. Assume-a, canonizando os seus autores diretos - Mohamed Atta e seus 18 companheiros - assentado na lógica do talião. Foi o castigo contra o castigo, que o levou a convencer-se da derrubada do World Trade Center como paga da destruição, cinco anos antes, de duas torres em Beirute, pelas forças de Israel com respaldo americano. Trata-se de lenta e definida forra, chegando-se à ruptura dos mundos, pela repetida agressão dos governos Bush. Do pai e do responsável pela maior máquina mortífera que pode temer o universo.
Bin Laden arrogou-se a falar pelo "povo islâmico", tanto os países desta cultura estão sufocados por ditaduras militares ou monarquias, todas aliadas dos Estados Unidos na cruzada devastadora. Mas, atenção, o Ocidente não se confunde com esta empreitada, já que aí está a Suécia "que nunca será atacada" pelo Al-Qaeda, que também acredita na liberdade - proclama o terrorista - e se vê como um instrumento contra a injustiça no globo.
Nos seus trajes até pontificais, com gala, pompa e pausa, o inimigo público número um do Ocidente exibe-se, na saúde aparente e na tranqüilidade que pode ser tanto dos profetas, como das intermitências da conhecida mansidão da loucura. Aponta com o dedo indicador tanto para a continuação da ameaça com à sua saída. Inverte as pontas do olho-por-olho, dente-por-dente pela segurança contra segurança. Dirige-se, diretamente, aos eleitores americanos para que entendam o que há por dentro da administração Bush, ou seja, o projeto totalitário do neoconservadorismo. Mostra que viu Fahrenheit 11/9, de Michael Moore, e vai à carga contra o presidente, imperturbável, que continuou a história das cabrinhas, no jardim de infância da Flórida, quando soube da hecatombe. O saudita espera sensibilizar os liberais, se voltarem ao Salão Oval. A proposta pode atingir o candidato democrata como comparsa presumido do terrorista, contra o presidente que repudiou, à altura, a agressão de Mohamed Atta e os dezoito outros "santos do 11 de setembro". Mas os Estados Unidos, no paroxismo já da opção interna, não deixaram o repto de Bin Laden vir ao coração da refrega. Os contendores esquivaram-se da provocação, aproveitando-se dela reciprocamente. Que governo é esse - repete Kerry - que deixou o arquibandido impune até agora? E se a fala da Al-Jazeera levasse o país a reviver o impacto monstro, reforçaria um Bush renascido como o vingador formidando sob a pilha de detritos, ainda fumegantes, do World Trade Center.
O terrorista falou à nação simetricamente rachada quanto ao futuro, de hegemonia absoluta ou de uma globalização, ainda sujeita a um jogo de forças e contraforças, multiplamente controláveis. Mas, a ter impactado o país, prevalecerá o recado da imagem, mais que do discurso. O intolerável é a figura de um Bin Laden em glória, o semblante pimpão do inimigo invulnerável, frente à suma potência ou impotência do megapaís; à bordoada em que é o só espetáculo que insulta toda a nação.
A figura imensa no vídeo da Al-Jazeera, na irrupção da sua surpresa, ocupa nos olhos de ver do país todo a cratera do ground zero. Não poderá mais ser removida por quem não a destruiu a tempo - e haja tempo nisso - no ataque troncho e repetido a Kabul e a Bagdá. E foi, definitivamente sobre o medo que se manifestou o desempate apocalíptico, em números que surpreenderam todas as previsões eleitorais. Fator recôndito, das últimas horas, saindo do porão de cada votante - se entregue à reação defensiva pura, frente à ameaça precisa, nada difusa, que lhe relembrava o vídeo inequívoco.
O sentimento de ameaça renovada apertou ao mesmo tempo o gatilho da América conservadora. O país posto contra a parede apoiou-se no mito ancestral da sua identidade. Bin Laden, afinal, consolidou o neofundamentalismo Bushiano - com a maior legitimidade democrática. Força-se agora, com toda desenvoltura a hegemonia, sem retorno, como sinônimo da cruzada antiterrorista sem quartel.
Jornal do Commercio (RJ) 5/11/2004