O que estamos vendo nos Estados Unidos nos últimos dias é a surpreendente repetição, com anos de atraso, de situações que já vivemos aqui no Brasil no tempo em que tínhamos votação em cédulas eleitorais, contabilizadas manualmente. De acordo com a geografia da apuração, um candidato poderia sair à frente, e depois perder força. Havia, claro, fraudes, e ficou famoso, por exemplo, políticos mineiros atribuindo aos votos “da Zona da Mata” uma mudança de tendência.
Trump está surpreso com o crescimento de Biden com os votos pelo correio, e acusa fraude. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro promete aqui pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral. Desde que temos as urnas eletrônicas, nunca mais houve acusações de fraude, e Bolsonaro insiste na denúncia de fraudes sem provas, como seu avatar Trump. E pretende pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral.
À medida que a apuração da eleição presidencial nos Estados Unidos vai mostrando uma provável vitória do democrata Joe Biden, fica claro também que não é apenas a agenda internacional que será alterada, obrigando o governo brasileiro a se reposicionar. Também a maneira de se expressar e de tratar os adversários políticos e temas sensíveis no mundo ocidental mudará sensivelmente, o que colocará o presidente Bolsonaro no papel de espécie de político em extinção em países civilizados.
Restarão a ele exemplares raros, como o Aleksandr Lukashenko, da Bielorússia, que queria resolver a COVID-19 com vodka e sauna; o presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdimukhamedov, que proibiu a palavra coronavírus, o premier húngaro Viktor Orbán. Todos eles, e mais pequenos ditadores africanos e do Oriente Médio, têm em comum com o ainda presidente Donald Trump uma agenda conservadora que vai da negação da ciência, aí incluído o meio ambiente, à defesa hipócrita da pátria e dos valores da família.
A provável derrota de Trump não o retirará da política, pois já existe um movimento interno para fazê-lo candidato em 2024. Existe essa possibilidade porque a 22ª emenda da Constituição americana se refere apenas à impossibilidade de eleição para presidente por mais de dois mandatos.
A limitação foi aprovada depois que Franklin Roosevelt foi eleito por quatro mandatos. Tradicionalmente, um ex-presidente não exerce nenhum outro cargo, embora existam casos de ex-presidentes que voltaram ao Senado, como Andrew Johnson, ou William Howard Taft, que exerceu o cargo de Chefe de Justiça após sair da presidência. O único presidente que, não tendo sido reeleito, voltou à presidência depois foi Grover Cleveland, em 1892.
Nada indica que o presidente Trump aceite uma eventual derrota sem questiona-la na Justiça, tentando ir até mesmo à Corte Suprema, como reafirmou ontem. Não foi à toa que ele insistiu em nomear antes mesmo da eleição uma juíza para a vaga aberta. Com seis votos conservadores em nove, ele acredita que poderá ganhar no último recurso.
Talvez a principal razão para que Trump se entregue com tanto afinco a não aceitar uma derrota seja o receio das possíveis ações legais que teria que enfrentar em Nova York, onde está a maioria de seus negócios. Mais do que seu ego, que é outro grande obstáculo a uma posição razoável. Assessores e líderes republicanos não concordaram com a declaração de que havia fraude na eleição, mas Trump já disse que, “ganhar é fácil, perder é difícil”.
O ex-vice-presidente Biden tem se dedicado a marcar a diferença entre ele e Trump. Todos os seus pronunciamentos têm sido no sentido de unir o país, de pedir calma e paciência para que todos os votos sejam contados e garantir indiretamente que aceitará o resultado das urnas em caso de uma derrota que ele não vislumbra.
Já o presidente Trump dedica-se a mandar mensagens pelas redes sociais alertando contra supostas fraudes nunca comprovadas, e pedindo que as cédulas eleitorais chegadas pelo correio não sejam contadas. À noite, fez a mais sensacionalista declaração desde o início da apuração, reforçando, sem mostrar provas, a denúncia de que está havendo fraude na contabilização dos votos.
É um fato singular na história da democracia americana, que coloca o país no rol das repúblicas de banana, expressão criada pelos próprios americanos para definir pejorativamente países politicamente instáveis, submetidos a governantes autoritários.