Vou fazer umas viagens longas de avião e, como aparentemente em relação a tudo de uns tempos para cá, fico matutando em como estou velho. Por exemplo, tenho certeza de que somente os mais velhos (tudo bem, menos moços) terão visto ou ouvido o verbo “avionar”. Deixaram de tentar impingi-lo acho que quando eu era ainda adolescente. Escreviam artigos mostrando como os tempos hodiernos exigiam esse neologismo, sem o qual a comunicação contemporânea ficaria impossível em português, ou contaminada pelos então inaceitáveis estrangeirismos. Houve um certo esforço em implantá-lo, mas acho que todo mundo se sentia meio fresco, quando dizia “vou avionar ao Rio de Janeiro”.
Minha primeira avionada foi no tempo em que ainda havia uns velhotes caturras que se recusavam a olhar para cima, quando um avião passava, e classificavam como mentirosa qualquer história relacionada com aviões. Só acreditavam nos desastres, cuja narração repetiam sempre que se mencionava um avião, entre comentários sobre a insensatez de querer sair voando por aí – Deus sabia muito bem por que não tinha dado asas nem a nós nem às cobras. E discutiam indignadamente sobre a alegada existência de banheiros nos aviões. Com que então havia uns buraquinhos neles, por onde eram espargidas no ar as sujeiras dos passageiros? Alguns sustentavam que não era problema, diante da força de dispersão da atmosfera, mas outros se revoltavam e comentava-se que d. Aurora, austera vizinha nossa da rua do Cedro, passou a só andar de sombrinha aberta, tão logo soube dessa situação ultrajante.
A outra ocasião em que avião virava centro de atenções era quando a Força Aérea fazia o voo da coqueluche, um acontecimento. Hoje acho que ninguém mais nem sabe o que é coqueluche ou se ainda existe coqueluche, quanto mais voo da coqueluche. Coqueluche, recordo aos que não sabem conservar a memória nacional, era uma tosse que dava em crianças. Que eu lembre, não costumava ser fatal, mas a tosse era incontrolável, o que às vezes impedia as crianças de comer ou dormir. Era muito contagiosa, tanto assim que, quando algo ou alguém estava muito na moda, se diziam coisas como “o bolero é a coqueluche do momento”. Hoje, quiçá a coqueluche do momento no Brasil seja a corrupção, mas se cura fácil, há muitos jatinhos dando sopa a quem quiser fazer o voo da coqueluche.
Mas estou explicando mal o voo da coqueluche. Era um voo, ou voos, a depender da demanda, que a FAB fazia, para sarar ou melhorar a coqueluche das crianças da cidade. Certamente por causa da mudança de pressão atmosférica ocorrida no avião, garantia-se que um voo de, creio eu, cerca de meia hora curava ou aliviava os sintomas da coqueluche. E nada apaga minha frustração infantil de nunca ter tido coqueluche, para tomar parte na aventura do voo. Fui um excluído e, nessa época, não havia ONGs para assumir esses casos. Tenho sorte em não ser hoje bandido, por causa desse trauma da falta de coqueluche.
Lembro até mesmo duas companhias nacionais que voavam a Aracaju, onde morávamos: LAB e LAP. Linhas Aéreas Brasileiras e Linhas Aéreas Paulistas. Pouco depois, na minha lembrança, a Aerovias Brasil, que durou mais tempo que as primeiras. Meu primeiro voo foi a Salvador, pela LAP. Ideia de meu pai, que sempre fez questão de desfrutar da mais nova tecnologia. Naquele tempo não se usava isso, mas acho que, se se usasse, minha mãe tinha pedido separação na hora. Não me esqueço do quadro lúgubre da família, com exceção do velho, entrando no avião como a caminho do cadafalso.
Os assentos eram em duas fileiras fronteiriças, ao longo da cabine, como nos aviões de paraquedistas que a gente vê em filmes de guerra. Havia um comissário de bordo que serviu sanduíches e refrescos, bem mais, pensando bem, que em certos voos de hoje em dia. E teria sido apenas mais um voo rotineiro da LAP, se meu pai não tivesse tido seu espírito aventureiro recompensado pelo destino e não houvéssemos experimentado a espetacular queda num vácuo. Até hoje não sei bem o que é queda num vácuo, mas foi a expressão que, entusiasmado, meu pai bradou lá de seu assento, quando, a troco de nada, num voo sem muitos sacolejos, o avião pareceu despencar vertiginosamente, para depois parar tão de súbito como começara, dando um tremendo susto até mesmo no comissário, embora não, é claro, em meu pai. Anos depois dessa viagem, ele ainda a contava, como quem havia escapado a fogo antiaéreo: “Caímos num vácuo! Você já caiu num vácuo?”.
Sou antigo também o suficiente para ter feito uma rota arcaica, verdadeira expedição aérea, entre Salvador e Belo Horizonte, já no tempo do DC3. O DC3 tem fama de excelente avião e dizem que até hoje há muitos em operação, mas, além de bom, virou mito e ganhou pelo menos uma frase ritual. Na hora em que os cintos já estava amarrados, as portas fechadas, e os motores acelerando, havia sempre diversos passageiros pálidos, outros se benzendo, outros debulhando um rosário e os que não estavam de olhos fechados se entreolhando, com um eventual sorriso amarelo. Aí sempre tinha um, mal disfarçando o terror, que também sorria e lembrava com os lábios trêmulos: “É um DC3!”. E se manifestava pelo menos um outro, que acrescentava: “O melhor avião já construído!”. Suspiros de alívio e anuências, com gestos e palavras enfáticos, amenizavam consideravelmente a viagem. Agora não se notam tantos apelos à Providência, mas espero que continuem, ainda que discretamente, ou então que as conversas nos celulares sejam chamadas diretas ao santo protetor de cada um, mas, mesmo assim, quando antecipo uma viagem das de hoje em dia, sinto um pouco de saudade do tempo do DC3.
O Globo, 11/9/2011