Conforme tem sido alertado pela mídia, nos últimos tempos são manifestas as tentativas de autoritarismo e de centralização por parte do governo federal, não satisfeito com os poderes que lhe confere a Constituição de 1988.
Uma questão da máxima relevância se refere à estrutura de nosso federalismo, um dos pontos em que o Brasil, desde a Carta de 1946, vem introduzindo valiosa contribuição no plano do Direito Constitucional, dando à nossa Federação uma estrutura diversa da vigente nos Estados Unidos da América.
Efetivamente, enquanto na grande República do norte a organização político-administrativa do país é dual, figurando em sua Constituição apenas a União e os Estados federados, no Brasil temos um ordenamento trino, uma vez que a organização e a competência de nossos municípios se acham também estabelecidas nas matrizes mesmas de nossa Carta Magna.
Dessarte, nossa Constituição estabelece originariamente os poderes da União, dos Estados e dos municípios, declarando os poderes atribuídos a cada um deles, bem como aqueles que lhes cabem em comum.
Pois bem, é essa cautelosa distribuição de competência que está sendo ameaçada pelo Projeto de Lei n.º 3.884/04, enviado pelo presidente da República ao Congresso Nacional, em 30 de junho último, com urgência constitucional, visto pretender regulamentar o artigo 241 da Constituição, no que se refere aos "consórcios públicos" que podem ser assinados por nossos três entes federados.
Não se nega a competência da União para essa disciplina, mas, em nosso Direito, como consta do artigo 278 da Lei de Sociedades Anônimas, a palavra "consórcio" designa uma entidade constituída tão-somente "para executar determinado empreendimento", não tendo personalidade jurídica.
Ao contrário, no referido projeto presidencial o consórcio público pretendido passaria a ser "pessoa jurídica de direito público que integra a administração indireta de cada um dos entes da Federação associados", como dispõe o inciso VIII de seu artigo 5º.
O pior é que se conferem a esse consórcio poderes que vêm subverter nosso sistema federativo, permitindo, como demonstrarei, que a União, por vias transversas, possa interferir em atividades da competência privativa dos Estados e municípios.
A competência dos consórcios públicos é imensa, conforme o demonstra o artigo 3º do projeto, abrangendo numerosos itens, que vão desde a prestação de serviços, inclusive de assistência técnica para execução de obras e fornecimento de bens à administração direta ou indireta, até a instituição e o funcionamento de "escolas de governo" (sic), o gerenciamento de recursos hídricos e a pesquisa e desenvolvimento urbano, rural e agrário! Nem faltam disposições que outorgam aos consórcios o planejamento e gestão dos serviços e recursos da Previdência Social dos servidores de qualquer ente da Federação, assim como o desenvolvimento urbano, rural e agrário.
Além disso, é prevista a delegação de competências dos entes federados, tudo à margem do estabelecido na Constituição quanto aos poderes de cada um deles, sendo pacífico que competência não se delega.
Essencial é verificar que os mencionados consórcios estão armados do mais amplo poder, tal como o de promover desapropriações ou instituir servidões que sejam consideradas necessárias ao desempenho de suas finalidades, graças a anterior declaração de utilidade ou necessidade pública ou de interesse social (artigo 10, inciso II).
Além disso, é-lhes conferido o poder de cobrar e arrecadar tarifas e outros preços públicos pela prestação de serviços, tudo à margem de autorização legal específica (artigo 3º, § 2º). Na realidade, são-lhes atribuídos poderes próprios dos entes federados, qual seja o de "outorgar concessão, permissão ou autorização de obras e serviços públicos".
Quem não percebe que o consórcio público é, inconstitucionalmente, equiparado às três Unidades que compõem a nossa Federação, o que só poderia ser feito mediante emenda constitucional?
Entra pelos olhos que uma das finalidades visíveis do projeto é, a meu ver, superar o estatuído no § 1º do artigo 24 da Lei Maior, segundo o qual, "no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais".
Nessa ordem de idéias, cumpre advertir que, sempre a pretexto de "prestação de serviços públicos por meio de gestão associada", a União, como parceira do "consórcio público", pode interferir em questões locais dos Estados e municípios, até mesmo em assuntos pertinentes à proteção do meio ambiente (artigo 3º, VI) ou na gestão e proteção de patrimônio paisagístico ou turístico comum (inciso IX).
A União, como "consorciada", poderá participar e atuar no gigantesco quadro de atribuições supra exposto (artigo 2º do projeto e seus incisos). Como ela integra o órgão supremo do consórcio público que é a Assembléia-Geral, composta exclusivamente pelos chefes do Poder Executivo dos entes consorciados, bem fácil é prever como ela terá sempre supremacia, ora se compondo com o Estado, ora com o município, ou impondo a ambos a sua vontade.
Bem se pode imaginar, em verdade, como, em virtude do poder político-financeiro da União, a bem pouco ficaria reduzida a autonomia dos Estados e municípios. Ora, no meu entendimento, essa intervenção oblíqua na vida administrativa dos Estados e municípios conflita, ademais, com o disposto, em matéria de intervenção, nos artigos 34 e 35 da Carta Magna.
Por outro lado, o emprego do consórcio público pretendido poderá privar os Estados de competências privativas, como, por exemplo, a de, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações e microrregiões, de conformidade com o que lhes atribui o § 3º do artigo 25 da Lei Maior.
Em conclusão, a lei que pretende instaurar os programados consórcios públicos visa, inconstitucionalmente, a alterar os limites de competência dos três entes que compõem a Federação brasileira, concentrando na União todos os poderes da República.
Errata - No último artigo, sobre integralismo (28/8), referi-me, erroneamente, a Rockefeller, quando deve ser Rothschild.
O Estado de São Paulo (São Paulo) 11/09/2004