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"Autofagia" no STF

 

Não há dúvida de que o presidente Bolsonaro se acha acima das leis, não gosta desse sistema republicano de pesos e contrapesos que dá limitações a seus poderes pelo Legislativo e Judiciário. Mas nesse caso do depoimento presencial que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello obrigou-o a fazer na investigação sobre interferência na Polícia Federal, ele tem razão de reclamar.  

Não há por que não lhe conceder o mesmo privilégio dado, nas mesmas circunstâncias, ao então presidente Michel Temer.  O presidente Bolsonaro e seus assessores veem na decisão do decano a confirmação de que ele não gosta do presidente.  A decisão do ministro Marco Aurélio Mello de levar a questão ao plenário é a melhor solução para pacificar o entendimento do STF a respeito dessa situação, que não é definida na lei. Os presidentes dos Poderes têm direito de depor por escrito quando participam de um processo na qualidade de vítima ou testemunha, mas a lei nada fala sobre o caso de serem investigados. Como se presidentes brasileiros não se encontrassem nessa situação, o que a realidade política vem desmentindo sistematicamente.   

Os ministros Luiz Roberto Barroso e Edson Fachin entenderam que, como a lei não proíbe, é possível inferir que o depoimento por escrito pode ser concedido mesmo quando investigados. O ministro Celso de Mello, ao contrário, acredita que, como a lei nada diz sobre o caso, deve ser dado ao presidente da República o mesmo tratamento dado a qualquer cidadão.  

Com sua decisão, o decano do STF criticou indiretamente seus colegas que deram a regalia a Temer. Ontem, ao enviar ao plenário a decisão, o ministro Marco Aurélio se disse contra o que classificou de “autofagia” no Tribunal, com um ministro anulando a decisão de outro. Com isso, já adiantou sua posição, pois se coincidisse com a de Celso de Mello, ele não cometeria nenhuma “autofagia”, apenas referendaria a posição do decano.  

A interpretação de cada juiz depende também do ambiente em que a decisão for tomada. A de Celso de Mello é fruto da necessidade do STF de mostrar independência, pois a gestão anterior de Dias Toffoli estava muito atrelada ao Palácio do Planalto, assim como a da Procuradoria-Geral da República continua sendo.

Tomar decisões de independência em relação ao governo é importante para manter a imagem pública do STF. Uma vez decidida pela maioria a interpretação a ser dada, uma decisão monocrática deixará de existir.  

A preocupação de seus seguidores tem razão de ser, pois Bolsonaro pode cometer atos falhos ou escorregões e contradições que por escrito não aconteceriam. Mas o presidente está numa fase boa de relacionamento institucional com o Judiciário, como ele mesmo ressaltou dias atrás, e deporia num ambiente mais favorável e controlado.  

Na época da denúncia, o ambiente político era completamente contra ele. Se for obrigado a depor presencialmente, terá tempo suficiente para se preparar, e só um destempero, que lhe é comum, pode causar algum incômodo. Bolsonaro já pode contar com três votos, os de Barroso, Fachin e Marco Aurélio, mas nada indica que terá uma vitória tranquila no plenário.  

Há a convicção de cada um, mas há também o peso da palavra do decano Celso de Mello, que está se despedindo em outubro do STF. Ontem o presidente Bolsonaro cometeu um desses atos falhos ao saudar, nas redes sociais, a decisão de Marco Aurélio de suspender o processo enquanto o plenário não decidir de que forma se dará o depoimento. “O Moro não tem nada que perguntar para mim” rejeitou Bolsonaro, mostrando qual é, na verdade, sua preocupação.  

O impacto político de questionar a decisão de Celso de Mello é negativo para o presidente, que já está sendo chamado de “fujão” nas redes sociais. Mas pode evitar um dano maior no depoimento presencial. 

O Globo, 18/09/2020