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Auto de Natal: O irmão Arturo Paoli

 

Neste ano feroz de pandemia, na extrema solidão que me atravessa, atenuada apenas pelo céu noturno, ouço a cantata de Bach, a BWV 248. Um júbilo que espanta todos os fantasmas. E penso num homem admirável que conheci em dezembro de 2006, nas colinas de Lucca.

Era um grupo de oito pessoas. Após o jantar, ninguém deixou a mesa, pois o anfitrião ia celebrar missa, como os cristãos primitivos. De quando em quando, ele interrompia a cerimônia, insatisfeito com o fogo da lareira, que procurava reavivar. A saúde frágil, era uma águia: nada escapava a seu reduzido campo visual.

O irmão Arturo Paoli (1912-2015) padre e missionário italiano, foto, viveu até os 102 anos. Lutou na resistência contra os nazistas e salvou os judeus, reconhecido como “Justo entre as Nações”. Viveu no deserto da Argélia, como Charles de Foucauld. Doou a vida aos mais pobres da Argentina e da Venezuela. Em Foz do Iguaçu, trabalhou, anos a fio, numa comunidade sofrida.

Olha para mim alguns segundos: “se você é brasileiro, conhece a palavra rabicho”. “Sim, Arturo”, respondi timidamente.

Falou do sermão aos pobres de Foz. Precisamos do amor de Deus, mas ele também precisa do nosso amor. Havia uma torre de alta tensão, plantada na comunidade, que não comunicava luz elétrica. A metáfora da altura e da energia traduzia a mística de Arturo. Como sentir a dimensão divina? Como exercer o amor de mão dupla, senão através da conversão e, neste caso, fazendo um rabicho? Deus é luz. Ninguém merece viver nas trevas.

A exclusão social é um escândalo. Il diavolo, o diabo. O liberalismo é a raiz de todos os males. Não tenho dúvidas. Mas não perco a dimensão da burrice do demônio, como dizia o saudoso Hélio Pellegrino.

Arturo Paoli foi dos primeiros a denunciar a teologia do mercado e os que morrem esmagados pela exploração: “ao amanhecer, abro a porta da minha casa e logo encontro nas ruas estreitas da favela pessoas que gemem sob as rodas do mercado, e elas são a minha família..."

Penso no Brasil em 2021. Toco uma peça de Bach ao piano. É o que me resta. Faz escuro. Conto as estrelas. Não tenho lágrimas.

O Globo, 25/12/2020