Tempo de cassações tem alguma coisa a ver com a velha prática da defenestração, um tipo de limpeza de terreno que lembra a fase que atravessamos. Atirar pela janela -raiz etimológica da defenestração- tinha a vantagem de não se mascarar em solução moral ou legal para se livrar de um adversário. Era praticada na marra, sem esconder os objetivos de poder ou conveniência de um grupo ou pessoa.
A origem da defenestração não deixa de ser piedosa. Num daqueles conclaves em que os cardeais se reúnem para eleger um novo papa, após meses de alianças, discussões e traições, houve um consenso entre dois cardeais: um deles seria eleito para o bem do povo de Deus.
Mas o diabo gostava, como gosta até hoje, de atrapalhar o povo de Deus. A briga entre os dois cardeais prolongou-se por meses e meses. O descontentamento foi geral, não apenas entre os fiéis do lado de fora do conclave mas entre reis e príncipes que, de alguma forma, dependiam da bênção papal. Consta que um cardeal -dizem que espanhol- propôs a um dos lados apanhar os cardeais enquanto dormiam e jogá-los pelas janelas. A proposta foi aceita.
Naquela abençoada noite, voou cardeal por tudo o que era janela do palácio apostólico. No dia seguinte, a cristandade ganhava afinal um novo chefe. Surgiu então não apenas a palavra mas a tática de se livrar dos adversários: defenestrar. Roberto Jefferson e José Dirceu, que de certa forma eram cardeais de suas respectivas bases, foram defenestrados.
Novas defenestrações são aguardadas. É bom lembrar que atirar os inimigos pela janela tem um objetivo definido e imediato: o de limpar terreno para alguma jogada posterior, um novo lance no tabuleiro.
Aparentemente, as cassações havidas e prometidas destinam-se à limpeza moral do terreno político e administrativo. É possível, mas, enquanto certos cardeais voam, outros ficam para aproveitar o que resta.
Folha de São Paulo (São Paulo) 07/12/2005