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Assim passa a glória do mundo

 

O cine -e o baile, de certo modo- estavam sobre o patrocínio do castíssimo santo


"QUERO BEBER, cantar asneiras..." -o desabafo foi feito por um rapaz que estava tuberculoso e era poeta, num dos Carnavais antigos. Ainda existem tuberculosos e poetas no mercado, mas ninguém precisa de datas especiais para beber e cantar asneiras. Tem-se o ano todo para isso. O Carnaval é um pleonasmo na vida e no comportamento do brasileiro. A festa existe e resiste. Incorpora elementos novos, e embora mudando sempre, continua igual.


Os jornais cassaram de sua enxuta linguagem a expressão "tríduo momesco". As autoridades, em órbita estadual e municipal, cassaram o próprio Rei Momo, elas aparecem mais do que o soberano da folia. Enxugou-se o carnaval de excessos provincianos e a festa, passada a limpo, conseguiu a façanha paradoxal de ser mais cosmopolita à custa de um último ranço provinciano: a presença dos ricos e famosos que insistem em abrilhantar um evento que tem brilho suficiente e autônomo.


Se os jornais enxugaram sua linguagem, se as prefeituras enxugaram os excessos de orgia, se as próprias escolas de samba também enxugaram, arquivando o gostoso mau gosto de antanho, trocando-o pela discutível erudição imposta de cima para baixo, nada de mais que, em determinado ano, eu começasse o meu carnaval pelo baile dos Enxutos, baile que por sinal não houve mas foi como se houvesse.


Deram-me uma opção: cobrir o Baile do Pão de Açúcar, bolação recente de empresário pouco recente, ou o Baile dos Enxutos, mais adequado às propostas de uma festa que -segundo os entendidos- procura liberar instintos.


Fui meter as fuças nos enxutos e no seu famoso baile, na praça Tiradentes. Dei com o nariz na porta: O Cinema São José, em cujos abafados salões se realizaria o baile, estava fechado. Um cartaz feito às pressas comunicava ao povo que a festa fora suspensa "por motivo de força maior".


Já havia candidatos à passarela do Cine São José (não sei qual a diferença entre cinema e cine, mas o São José não é cinema, é cine). Houve estupor, perplexidade e cólera nas calçadas adjacentes. E os enxutos, depois de estuporados, perplexos e coléricos, atingiram um estado de excitação suplementar não previsto na efeméride. Erram aqueles que, por má informação ou preconceito, acreditam que os enxutos desmaiam à toa, pedindo sais. Com a barra pesada daquela época, o enxuto era antes de tudo um forte. Sobretudo em horas tais e tantas.


Ameaçaram tomar providências genéricas e particulares, um deles constatou a falta de cultura nos escalões policiais que nos protegem a moral e a compostura. Um outro anunciou que se queixaria ao bispo, pois o cine -e o baile, de certo modo- estavam sobre o patrocínio do castíssimo santo.


Como diria Machado de Assis: "ao pé" da praça Tiradentes, numa das esquinas da rua Gomes Freire, funcionava um baile promovido pelos comerciantes locais. As démarches foram bem-sucedidas -um exemplo que os Bin Laden e Bush da vida podiam aprender com o Manolo, dono do Bar Paulistinha, e com a aguerrida comissão de frente dos enxutos, que aceitou pragmaticamente o argumento da "força maior", deu a volta por cima e descolou uma festa que parecia perdida.


Tal como o Baile dos Enxutos, o Baile do Paulistinha acabou não havendo, havendo antes uma gentil mistura dos dois. E todos puderam assistir ao emocionante desfile dos rapazes assumidos que assumiram a liderança dos acontecimentos e da passarela. Foram poucos, por sinal, mas bastantes.


Em linhas gerais, um travesti fantasiado é o contrário de um iceberg que na superfície só mostra um oitavo do seu volume. Ele coloca na cabeça um penacho tão alto e relevante que equivale a sete oitavos do conjunto. O que fica embaixo (o corpo do enxuto), por mais rebolativo que seja, fica submerso naquele mar de bananas, pluma e parafernálias outras.

A turma do sereno fica olhando, vaia cada vez que aparece um deles. Já disseram que a vaia é o aplauso dos que não gostam. Num desfile de travestis, a vaia é o aplauso dos que gostam mesmo. O homem comum tem bom coração e aprecia o esforço dos rapazes que metem os peitos na competição, peitos inchados de hormônios e reforçados de silicone. A festa é deles. Eles são a festa.


Folha de S. Paulo (SP) 1/2/2008