A presença de Jorge Medauar no conto brasileiro mostra um aspecto importante de nossa literatura. Suas narrativas participam do clima da poesia e ao mesmo tempo erguem seu mundo ficcional, jogando o peso do sentido sobre cada substantivo, advérbio, verbo das frases, com adjetivos que se detêm no absolutamente necessário.
Assim é o uso de gerúndio, muito brasileiro, adotado por Medauar em trechos como este: "As folhas já estavam grandes, esparramando". A cada trecho da narrativa, consegue Jorge Medauar o máximo de significados com as palavras comuns de sua gente, de sua região, que acabam sendo as palavras de quase todos os lugares do interior brasileiro.
Afirma Ezra Pond, em seu "ABC of reading", que as lições de Flaubert a Maupassant eram das melhores sobre a arte de narrar. Saíam os dois a passeio, e Flaubert pedia a Maupassant que descrevesse alguém que fossem encontrar, alguém que Maupassant conhecesse e Flaubert nunca tivesse visto. Uma "concierge", por exemplo, ou um homem de rua, um de balcão. A idéia era que Flaubert, com base na descrição de Maupassant, reconhecesse exatamente a "concierge" que o amigo descrevera, sem confundi-la com nenhuma outra.
A história do conto brasileiro tomou novo rumo quando o poeta Jorge Medauar resolveu contar casos. Sua intimidade como ritmo do verso deu-lhe um ritmo de prosa que não é comum entre nós. Estilo solto, frases sem compromissos com usanças tradicionais de sintaxe, palavras subordinadas ao momento narrado, a este servindo e com leveza mostrando coisas e gente. Nas idas e vindas de Romeu pela feira, no conto O azulão, é toda a zona do cacau que se fixa.
A toada do cego, O vendedor de pássaros, a menina Isabel de papelote na cabeça, os barcos de Maragogipe, Camamu, Alcobaça, com potes, quartinhas, louças de barro, compõem um quadro que, sendo de palavras, vira pura imagem e, sendo visual, retém uma beleza de cadências de língua falada pelo povo.
Nosso conto pegou jeitos variados, principalmente depois que a geração de 45 promoveu, com sua obra, um automático reaferimento do que houvera em época imediatamente anterior. E aí se enfileiram nomes que se aproximam do gênero com diferentes manuseios de instrumento: a Lygia Fagundes Telles de "O cacto vermelho"; o Carlos Lacerda de "Xanan"; o Hélio Pólvora de "Os galos da aurora"; o Rubem Fonseca de "A coleira do cão".
E é exatamente através de um poeta que se fez gente durante a II Guerra Mundial e começou a escrever sob o influxo das modificações de então (estas são algumas das características da geração de 45 em todo o mundo) que o conto brasileiro ganha um tom de poesia-chão, com o terra-a-terra subindo e uma expressibilidade poética de que Jorge Medauar passou a ser, a partir de então, de nossos melhores executores.
Livros de Jorge Medauar, como "O incêndio e histórias de menino", merecem reedições que mostrem a força da nossa narrativa curta nos últimos cinqüenta anos. Hélio Pólvora em seu prefácio pede um estudo mais profundo da obra de Jorge Medauar, ele o finaliza com estas palavras: "Jorge Medauar está longe de ser escritor romântico. Seu camponês é exato, perfeito, dos pés à cabeça, no corpo e nos sentimentos.
Sem pieguices ideológicas, sem otimismos inconseqüentes, sem atitudes de jeca folclórico. Certo de que lhe cumpre, antes de mais nada, continuar vivo. Medauar foi um dos que introduziram na história curta brasileira a impregnação poemática, na composição inclusive. Surpreendeu o nosso conto em marcha para a introspecção, na época em que desestruturava o arcabouço em proveito de maior interioridade.
O mergulho analítico que, em outros contistas, a partir sobretudo dos anos 40, criou gênero híbrido, ou decretou o hermetismo, em Medauar equilibrou-se graças ao núcleo regional realista de sua inspiração e aos exercícios de oralidade que o incluem entre os prosadores preocupados com a lingüística. Sim, porque a linguagem de "O incêndio", acasalamento feliz de oralidade e português literário, é outro aspecto digno de estudo específico que temos certeza, alguém fará um dia."
A orelha de "O incêndio" conta com depoimentos de vários escritores de renome, como João Guimarães Rosa, que diz: "Você marcou ponto alto, fez livro belo e importante: cheio, mas corrente; exato, mas vivinho; enxuto, mas orvalhado, bem. São sempre momentos de sensibilidade, mas no confechamento de contornos das histórias, na melhor tradição.
Há rigorosa autenticidade de campo, meio, cenário, há muita observação direta, documentando certo, sem atravancar. Tudo humano. Tudo arte, também. Você é mestre no unir os aspectos, as coisas. E, a língua, uma linha bem fechada, padrão do melhor, gostosura. Acredite: o que digo, é o que acho".
Já o poeta Carlos Drummond de Andrade, assim o define: "Este livro confirma e realça qualidades que lhe são próprias, a começar pela sensibilidade de artista, que vê o mundo com olhos, não só perscrutadores, mas dotados de simpatia e compreensão. Sou de Itabira, e sinto como você a graça e a humanidade de Água Preta."
Tribuna da Imprensa (RJ) 19/8/2008