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Arte de Naufragar

 

A cem anos do naufrágio do Titanic, o Costa Concórdia não chega a ser um texto forte, mas uma nota de pé de página. Um deplorável libreto em preto e branco – sem o drama da metáfora daquela branca montanha de gelo – cheio de lances absurdos, dignos de uma opereta de gosto duvidoso, ou de uma velha história em quadrinhos, definida com repetidos traços maniqueístas. Do primeiro e único ato, surgem, em pares simétricos, as árias do capitão irresponsável e o dueto com o comandante exemplar, do recitativo da bailarina britânica e sua postagem no facebook, ao brinde da jovem moldava no coro dos oficiais.

Uma chuva de artigos cai sobre o navio, tão duvidosos quanto sua aproximação da ilha do Giglio, e destaca, dentre outros temas, o naufrágio da zona do euro, a qualidade histriônica habitual dos italianos (para delírio dos tablóides ingleses), o contraste do governo anterior com o atual, como se houvesse uma tripulação de sessenta milhões de pessoas, dividida entre os que vivem dentro ou fora de um horizonte ético dentro do navio ébrio da república italiana. Ou, finalmente, o argumento de um possível andróide,  acerca da perfeição da técnica ameaçada pela ingerência dos homens.

A metáfora do naufrágio é de uma riqueza ímpar, razão pela qual já não significa muita coisa. Por dizer tudo, corre o risco de não dizer coisa alguma. E, se é verdade que as grandes narrativas perderam força em nosso tempo, como disse Lyotard, também é verdade que o modo de naufragar do Titanic e do Concórdia mantém  uma distância férrea, com timbres e registros narrativos  inconfundíveis.

Sobre o Titanic, Ernst Jünger evidenciou o combate entre a luz e a sombra, a temeridade do progresso com o pânico do salvamento, o luxo excessivo com o fim impiedoso, do controle da automação ao imprevisto da catástrofe, que aparece como um acidente de trânsito. Para Jünger, o naufrágio representa a perda da liberdade. O passageiro, ou melhor, “indivíduo já não se encontra na sociedade, como a árvore na floresta, mas se parece com um passageiro de um veículo que se move rapidamente, que se pode chamar Titanic ou Leviatã.” 

O que espanta na história do Costa Concórdia é o modo pelo qual os fatos foram banalizados, desde a sucessão de atitudes inacreditáveis do capitão ao debate acalorado dos espectadores, que formam uma torcida na blogosfera, como quem ia assistir a uma batalha naval dentro do Coliseu da Roma antiga. Um esporte coletivo. Um mero acidente das regras de trânsito,  de suas regras mínimas, levando à perda de pontos na carteira e multa.     

A temperatura da narrativa começa a diminuir quando as atitudes anônimas de solidariedade aparecem no decorrer da história, tirando da capitania dos portos a unção de heroísmo, quando esta não fez mais que cumprir seu dever, como reconhece o próprio comandante.

Como espectadores, vemos tudo em terra firme, ao longe e ao largo dos fatos. Mas é preciso lembrar que, de alguma forma, estamos todos a bordo, como disse Pascal, sob o domínio de um branco imponderável, o branco do iceberg ou o branco da  baleia Moby Dick, sobre a qual Melville escreveu o admirável mistério do branco, no capítulo intitulado “the whiteness of the whale”, com diferentes chaves de leitura para o confronto do corajoso capitão Ahab com o cachalote branco, ao supremo desenlace do naufrágio no oceano Índico.       

Do branco das grandes narrativas, passamos ao preto e branco do Costa Concórdia, como um videogame dentre outros, palavras de ordem que buscam o porto de camisetas e outros produtos semelhantes, que tirem da narrativa a sua profundidade essencial. Uma opereta cheia de coristas e bailarinas, como a que disse – ou cantou –   “my name is Rose”.

A narrativa do navio italiano deixa uma lição que não podia ser mais grave, de grandes implicações éticas, contra a qual devemos reagir: a de que já naufragou a arte de naufragar.   

O Globo, 25/01/2012