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A arte de fazer o mesmo filme

 

Ao publicar "Fare un Film" (Ei-naudi Editore), Federico Fellini (1920-1993) não chegou a fazer um livro. Os outros é que fizeram por e para ele. Na verdade, é uma coletânea fragmentada de algumas reportagens já publicadas na Europa, trechos de gravações feitas com amigos, enfim, desabafos, gritos e confissões que seriam mais interessantes se, por trás das palavras, não estivesse um homem que, preferindo imagens, não gosta de palavras. 0 livro está longe de ser uma autobiografia, uma gramática do cinema, um ensaio estético.

É tudo isso junto, mas de forma felliniana, um caos administrado pelo delírio de um artista que até hoje (conforme ele próprio confessa) está fazendo um único filme ao longo de várias tentativas.

0 mesmo podia ser dito em relação a Charles Chaplin (1889-1977) e Luis Bunuel (1900-1983): são autores obsessivos que contam sempre a mesma história, transmitem o mesmo recado. Chaplin, Bunuel e Fellini são inventores máximos, chegaram a inventar a própria memória:
"Agora o filme está pronto. Eu o abandono com tédio. São imagens, apenas imagens. Imagens que eu filmei usando os mesmos materiais, talvez solicitado, vez ou outra, por um ponto de vista diverso. Não é a memória que predomina em meus filmes. Dizer que minha obra é autobiográfica é uma facilidade, um conceito arbitrário. Eu inventei quase tudo: uma infância, uma personalidade, nostalgias, sonhos, recordações".

As primeiras páginas de "Fare unFilm"parecem anunciar essa mesma memória que os admiradores de Fellini tanto curtem. Ele começa falando de Rimini, sua cidade provinciana e mítica, dos personagens que passeiam em seus filmes: os boas-vidas de "I Vitelloni"; o idiota fuízo; a emancipada Gradisca; a prostituta da praia que se vende aos pescadores por um punhado de sardinhas ("Saraghina"), que está presente em "Oito e Meio" e "Amacord"; os professores do ginásio, os pais, o cinema Fulgor, o trem que parte em direção a Roma.

Num livro de cineasta, o que mais importa são as revelações a respeito do background de cada filme, suas motivações, embaraços, alegrias e frustrações. Exemplo: a história da filmagem de "E o Vento Levou..." está ficando mais importante (e interessante) do que o próprio filme. Felizmente, Fellini é boquirroto, fala tudo a que tem direito, passa recibo sem nenhum pudor a proteger o mistério de sua criação.

Fica difícil adivinhar que diretores Fellini invejava. Tirante Roberto Rossellini (1906-1977), ele parece desprezar os demais, respeitando-os apenas como profissionais. Nas páginas iniciais do livro, ele admite que não teve a formação habitual de um cineasta. Entrou para o cinema sem ter visto os clássicos, não conhecia F.W. Murnau (1888-1931), Carl Theodor Dreyer (1889-1968), Sergei Eisenstein (1898-1948).

Cinema, para ele, era a tela do Cinema Fulgor, em Rimini, onde via e revia "Maciste ali Inferno", dramalhões que se passavam na Grécia ou na Roma Antiga, com os canastrões nacionais ouprovincianos. 

Grande parte —e talvez a melhor parte— do livro de Fellini é dedicada ao "clown", em parte porque o diretor curte mesmo esse gênero de arte. Fellini diferencia o "clown branco" do "augusto" que é o palhaço propriamente dito. 0 "clown branco" simboliza o poder, a mãe, a escola, a igreja, a moral, a sociedade, diz o que pode e o que não pode, ensina que deve ser feito. 0 "augusto" é o homem em estado bruto, a criança, que faz ou não faz o que não pode nem deve.

Fellini arrola personalidades distribuídas em extensa página, é o melhor trecho de seu livro. Admira Carlitos, Buster Keaton, o Gordo e o Magro, que conseguem ser, eles sozinhos, "augustos" entre si mesmos, sendo o resto do mundo um imenso "clown branco". Fellini chama a atenção para um detalhe que nunca foi estudado na dupla Gordo e Magro: a assexualidade. Numa época em que a lei da decência obrigava o cinema a colocar os casais em camas separadas, o Gordo e o Magro dormiam na mesma cama.

Admirações à parte, quem Fellini mais admira é ele próprio. Submetido a uma experiência com LSD, passou oito horas falando de si mesmo, numa verborragia delirante que, gravada por amigos, não conseguiu ser ouvida nem por ele mesmo. Falou muito, mas disse pouquíssima coisa. No fundo, é também uma imagem na retina de duas gerações.

 
 Folha de São Paulo, 1/4/2011