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A aranha é o caos para a mosca

 

Ainda não vi a série que está na televisão sobre Xuxa e seu período de enorme sucesso na TV Globo. Mas o tema candente e a competência talentosa de Pedro Bial são garantias de que deve ser no mínimo interessante. Na verdade, estou apenas esperando que todos os episódios (são seis) estejam em um só canal para vê-los de uma vez. Tenho a impressão de que ver aos poucos essa série é perder o sentido geral de um momento tão importante na História do Brasil.

O sucesso de Xuxa na televisão e no resto do Brasil corresponde, mais ou menos, ao tempo entre o fim da ditadura cívico-militar que começou em 1964 e a redemocratização em 1985, com a vitoriosa candidatura de Tancredo Neves à presidência. Esse é um período em que a população começa a abandonar a admiração pelo que os ditadores prometiam ao povo brasileiro no auge da implantação do regime de exceção.

A famosa e tão festejada estrada Transamazônica, que seria construída no interior do país atravessando-o de leste a oeste, levando o progresso aonde ele nunca nem havia sido sonhado, é explorada à exaustão pela propaganda da ditadura. Mas a Transamazônica perde seu valor, não significa mais nada para o povo do país, quando chega a notícia de que, para construí-la, o Estado está tendo que tirar os indígenas do local. Não era isso o que os admiradores e defensores da estrada (e do Estado) esperavam.

Essa decepção com os grandes projetos convivia com o fracasso dos projetos mais simples do governo da ditadura. O cidadão não acreditava mais no controle das contas do país, que seguia vivendo uma inflação exorbitante, um custo de vida dramático, a ausência de recursos que o permitissem sobreviver com dignidade. O Brasil pegava fogo e os responsáveis perceberam que tudo aquilo podia levar o país a uma situação calamitosa e irreversível. Assim, de certo modo, haviam permitido a eleição de Tancredo e a reversão rumo a um novo regime, dentro dos mesmos princípios dos quais não podiam abrir mão.

A eleição de Tancredo, um pouco nestas mesmas condições de hoje, foi um episódio nem tão dessemelhante do que o que deve acontecer agora, se não quisermos levar o país a um rompimento entre as forças que hoje aqui têm um significado. A única solução visível e viável é a da concertação.

Por mais estranho que possa parecer, hoje vivemos no Brasil uma situação política bem semelhante àquela. Se Xuxa nos diz, como vi numa promoção de sua série na TV, que ela foi enganada e só agora havia percebido o “que fizeram dela”, me pergunto quem ela afinal é, qual seu papel (consciente ou não) em toda essa história. Se ela não sabe a resposta a esse seu espanto, o que dizer dos meninos e das meninas que a acompanharam esse tempo todo, um bando apaixonado por ela e disposto a segui-la aonde fosse?

Esses adolescentes aparecem na série depois de cada plano de Xuxa, inteiramente tomados por estar com ela, naquela marcha para a conquista do planeta.

Não me interessa saber “o que fizeram” de Xuxa. Mas me interessa saber o que, afinal de contas, fizeram desses adolescentes que acreditaram em seu poder de mudar o Brasil e o mundo. Esses sim, são o povo que me interessa, os representantes que costumamos procurar quando não temos uma resposta firme e coerente para uma situação histórica que vivemos, mas ainda não entendemos exatamente do que se trata ou se tratou.

Num texto de Rita Lee, publicado depois de sua morte e estando Xuxa já afastada da “vida pública”, a genial compositora e pensadora original procura explicar o papel de sua participação junto à juventude na vida do país. Ela parece estar se referindo aos adolescentes de Xuxa que haviam “crescido” e se tornado adultos. Rita Lee diz que “o que é normal para uma aranha é o caos para uma mosca”.

O Globo, 23/07/2023