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Ano Velho

 

Nos meus tempos de menino, Pinheiro e São Bento, terras em que nasci e onde passei minha infância, na casa do meu avô, os bichos ali existentes faziam parte do nosso afeto. Não eram muitos, mas pelo quintal pastava sempre uma vaca parida para o leite fresco. Quando viajei ali estava Severina, boa de leite. Outra de que me recordo era a Beijosa, mansa e fácil de ordenhar. Havia também um cachorro, Seu Zezé – latia muito, mas não gozava da fama de ser valente.

Os cavalos eram três, um deles, Papa Légua, de sela, muito bem tratado a palmito de babaçu. Era a montaria de meu pai no concurso de cavalos de Peri-Mirim. Os outros dois eram de serviço e mando. Viviam soltos e se chamavam Bom Marido e Ano Velho. Mansos, prontos para tudo, a toda hora. O primeiro era de uma docilidade absoluta. Meu pai não hesitou em compará-lo a marido de mulher mandona e pespegou-lhe o nome de Bom Marido.

O cavalo não tem na história o destaque que deveria ter, depois de ajudar o homem a vida inteira e transformar-se em símbolo de força. O mais fascinante cavalo da literatura é o de Dom Quixote, Rocinante, que se parecia com o dono e participava de suas batalhas imaginárias.

Outro de que me lembro é o de Cantaclaro, herói de Rómulo Gallegos. O personagem montava um animal preto que o guiava, nas noites escuras, na mata da Anima Sola. Lembro uma copla com o perigo de citar velhas leituras: “¡Caballo negro, retinto, / ya están trocadas las suertes, / hasta hoy me cargaste en vida / desde hoy me cargas en muerte!”. Não podemos esquecer Incitatus, que foi nomeado senador por Calígula. Alexandre teve seu Bucéfalo e o cavalo de César tinha dedos (segundo Suetônio).

O mais célebre de todos, entretanto, foi Pégaso, o cavalo alado, filho de Poseidon, nascido já formado da Medusa decapitada por Perseu, que transporta Belerofonte para matar a Quimera, e que com uma patada abriu a fonte Hipocrene, cantada por Camões. Pégaso se tornou o símbolo da poesia e da inspiração poética.

Resta falar do cavalo castanho que meu avô comprou de ciganos nos tempos em que esses perambulavam vendendo animais. Era mole, manso, ideal para ser montado pelos meninos como eu. Meu avô fez o lance: “Dou um jumento mais dez mil réis”. O cigano pediu vinte, e finalmente o negócio foi fechado. Meu avô quis saber o nome do cavalo. Cacete, respondeu o cigano. O velho então perguntou: “Que data é hoje?”. Responderam: “31 de dezembro”. E meu avô concluiu: “Então o nome do cavalo é Ano Velho”.

Até hoje, nas noites de 31 de dezembro, vejo o Ano Velho trotando nas estradas da minha memória.

Folha de São Paulo, 31/12/2010