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A âncora que falta

 

É raro o dia em que, com ou sem motivo, não lembro do Antonio Callado. Fomos amigos durante anos, companheiros de Redação, de editora e de cela no hediondo quartel da Polícia Militar, na rua Barão de Mesquita.

Quando pedi demissão no jornal em que trabalhávamos, em solidariedade a mim, ele também se demitiu. Lembro a última entrevista e o artigo que escreveu na "Ilustrada", no mesmo espaço em que o substituí.

Foi pouco antes de morrer, na véspera de fazer 80 anos. Derramou um pouco de amargura, recordando que nos longos anos em que trabalhava na BBC de Londres, durante a Segunda Guerra Mundial, sentia fome e sede do Brasil, acreditando que o velho mundo acabara e que chegaria a nossa vez.

Cobriu a Guerra do Vietnã e mais uma vez confirmou essa esperança. Seu grande romance, "Quarup" (1967), é o resultado não dessa esperança, mas da crença num grande projeto nacional.

Na entrevista final, ele diz que "perdemos a âncora moral". Não por causa da ditadura ou de crises eventuais, mas porque os valores humanísticos da sociedade humana, apesar das filosofias, dos sistemas políticos, das religiões, da economia, das artes e da própria técnica, estavam soterrados pela ambição do sucesso e do lucro.

A perspectiva que ele traçou não é muito diferente de nossa atual realidade. Sucesso e lucro à custa do oportunismo desvairado que geraria, entre outros males, a corrupção que contagia nossas instituições.

Ao mesmo tempo em que muitos se orgulham do nosso desenvolvimento material (exagerado em muitos casos), de nossas taxas de crescimento e de nossa presença no cenário internacional, a maioria se envergonha com o dia a dia da vida pública, onde os culpados são cada vez mais ostensivos, e os justos, cada vez mais raros.

Folha de S. Paulo (RJ), 19/3/2012