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América Latina, democracia e guerra civil

 

Os incidentes finais da legitimação da chapa presidencial eleita no México abrem uma nova brecha na validade das instituições latino-americanas. O candidato Lopez Obrador, perdendo a eleição por frações mínimas, pediu e obteve a recontagem de votos, forçando ao extremo as regras do jogo democrático. Não obstante a clara sentença final da Corte Suprema pelo candidato Fernando Calderón, o perdedor, em manifestação inédita, neste último século, em todo o Continente, negou-se em aceitar a voz das urnas referendada pelo martelo do Judiciário.


 


Aí está a segunda nação da América Latina conflagrada, repetindo seus comícios em favor do candidato da esquerda e apontando a desestabilização continuada da Presidência eleita.. É a primeira vez que uma rebeldia às premissas da democracia põe em causa, mais que a fraude do sistema, a sua validade para exprimir um desejo de mudança. Na voz de Obrador, os simples resultados eleitorais pouco valem num país fraturado pelo abuso sistêmico, e formalmente legitimado, de seu poder econômico.


 


A gravidade do gesto do candidato perdedor, e da promessa de protestos e tumultos por seus seguidores, é a da denúncia da democracia como congênita, na sua fórmula atual, às dominações sem volta do neoliberalismo. A contagem das urnas empresta uma boa consciência permanente ao statu quo, que, por sua vez, provém de uma aquiescência ancestral com as dominações imunes ao advento da alternativa no exercício do poder.


 


O neoconfronto com a democracia agora, no México, arrancou exatamente no seu terreno reconquistado, tanto Fox, que ora encerra o mandato, derrubou oito décadas de governo do mesmo partido e do mesmo jogo de forças em que se cristalizou o establishment do país. Tudo ou nada se poderia prometer, numa sigla que já se prevenia no seu paradoxo para qualquer desfecho, no virtuosismo dialético trazido ao "Partido Revolucionário Institucional".


 


O ineditismo da vitória de Vicente Fox, pelo Pan, há pouco mais de um lustro, não deu apenas a pá de cal a um situacionismo que antecipara, no século passado, a durabilidade dos regimes soviéticos, de Lênin à Gorbatchev. Numa multi-aceleração modernizadora, o governo ora findo somou a entrada nas regras do jogo na economia de mercado, à derrubada dos controles estatais e à permissividade ampla dos capitais externos. O México, agregado ao Canadá, através da Alca, asseguram um sistema de dependência econômica hoje, sem retorno, com os Estados Unidos.


 


O último pleito sacralizou o fato consumado, tanto quanto fez da oposição, mais do que o dissenso que se espera dos regimes democráticos, a ruptura com a polarização extrema em que o governo Fox se integrou ao mundo hegemônico. A gravidade do precedente da rebeldia institucional só nos leva a ver a fagulha, sem ainda escutar o seu estrondo. E estamos apenas no início da ameaça à democracia, quando o establishment também no extremo oposto, é derrotado nas urnas. O governo Morales enfrenta, agora, greve sem data, da região mais rica contra a nação desmunida, rachando o país..


 


Qual será a reavaliação da dita conquista irreversível da democracia, quando servia de consolidação política de uma injustiça medular, tanto social quanto econômica? A esta altura da crise das modernizações atrasadas, progrediria a denúncia deste modelo político como ideologia dominante? Como buscar novas fórmulas políticas de dissenso respeitável de qualificação das vozes para a mudança?


 


A gravidade do movimento de Obrador no México ecoa no coração da América do Sul, dentro de uma mesma ruptura, partida do extremo oposto. Quebrando as dominações tradicionais o governo Morales na Bolívia derrubou o establishment, par enfrentar agora um racha nacional. Aí está, já em termos nitidamente regionais, a greve sem quartel em que o país rico confronta a derrubada do regime do país pobre.


 


Desaparecem as expectativas da mudança dentro do sistema - no que permitiria, in extremis, um governo democrático - por um reformismo mais ou menos contundente. Abrem-se as perspectivas de um conflito radicalmente distinto das guerras civis clássicas em que pelejaram, cutaneamente, tantos status quos no mundo andino e, especialmente, a partir do "entra e sai" dos Presidentes bolivianos.


 


No mesmo limiar despontaria o Peru, ameaçado, ainda há poucos meses, com a eventual vitória do candidato Ulanta Humala, de reproduzir o horizonte de Morales em La Paz, de reformular o Estado-nação, da democracia ocidental, em bem dos clamores étnicos e primordiais de um país quetchua, ou aymará. Chegaremos, aí, às últimas conseqüências da profecia de um Prebish, na América Latina, da inviabilidade de dissociarmos as instituições do desenvolvimento ao mesmo tempo político, econômico e social.


 


A chegada, afinal, ao impasse aí está, no sacrifício ostensivo e sem retórica da democracia, tanto serviu ao discurso da mera dominação. Nas "vertentes que sobram", Chávez lhe poderá dar todo o conforto da sobrevida do populismo, pago e bem pago pelo dinheiro barato do seu petróleo,. Ou Lula, na enorme responsabilidade da reeleição, a viabilidade, afinal, por um povo que vota mesmo, e um regime que mude, de fato e sem retorno.


 


                                                               Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 15/09/2006

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 15/09/2006