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Alô, alô, carnaval

 

O carnaval vem aí, começa no fim desta semana. Mesmo que você não esteja a fim desse barato, pegue uma carona nas ondas da alegria, como os surfistas campeões se deixam levar pelas de Pipeline e Nazaré. E esqueça, por algum momento, o que nos aborrece.

Esqueça, por exemplo, que quando alguns políticos e funcionários do governo se manifestam, seja sobre o que for, há uma estranha e automática identificação entre eles, nem sempre muito claramente revelada. É como se um acordo secreto os ligasse na surdina. Na mesma semana em que o STJ liberou a nomeação de Sergio Camargo para a direção da Fundação Palmares, o ministro Paulo Guedes revelou seu desgosto em ver pessoas sem pedigree social viajar à Disneyworld.

Depois de tratar os servidores públicos como parasitas (antes do Oscar!), nosso ministro da Economia resolveu acusar as empregadas domésticas de serem responsáveis pelo valor do dólar. Uma acusação ambígua, pois ao mesmo tempo em que lamentava que elas, com o dólar barato demais, vivessem saracoteando em festas na Disney, ainda afirmava que era melhor mesmo que a moeda americana aumentasse de valor, isso não tinha nada demais. E ele é um grande economista, educado em Chicago.

Com um pouco de cuidado, constatamos o mesmo sentimento, em declaração semelhante de Sérgio Camargo, a propósito de sua nomeação para gerir o principal meio oficial de promoção da cultura afrodescendente em nosso país. Ele nos dizia que a escravidão, apesar de tudo, acabara por ser benéfica para os negros brasileiros, herdeiros dos africanos escravizados. Sendo a escravidão a mãe de quase todos os nossos males sociais.

No varejo de sua ideologia, o poder público segue nos afirmando sua extravagante opção pela interdição de tudo que possa perturbar a ideia oficial de um mundo sob controle. O que deseja o plano de comportamento sexual da juventude, proposto pela ministra e pastora Damares, senão o impedimento do prazer e da alegria? Será que foi um acaso seu lançamento nas vésperas do carnaval? E os livros apreendidos pelo governador de Rondônia, que se declara fiel seguidor de nosso presidente? Foram 43 obras de autores como Machado de Assis, Franz Kafka, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Edgar Allan Poe, e outros. Gente dos quais o bravo governador não deve ter lido nem a orelha dos livros.

Aliás, é bem impressionante (com dois ss!) a obsessão de nossos dirigentes pelo sexo, embora o tratem como inimigo mortal da santidade. A mulher é sempre a chave das metáforas oficiais para comportamentos repudiáveis. Como nosso desastrado Goebbels, ex-secretário de Cultura, fez questão de tratar nossa inquestionável Fernanda Montenegro. Ou como o próprio presidente da República tratou a esposa de seu colega francês, que protestou contra as queimadas na Amazônia.

A vítima mais recente desse comportamento é a jornalista Patrícia Campos Mello. Em seu depoimento à CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) das fake news, o profissional de marketing Hans River do Nascimento acusou Patrícia de tentar obter informações seduzindo-o, oferecendo-se sexualmente. Desmascarado pelos próprios parlamentares da CPMI, o rapaz ainda teve que encarar um manifesto de protesto assinado por 2.411 mulheres da imprensa, solidárias a Patrícia.

Como sempre, nossa esperança se ilumina com o carnaval que começa no próximo fim de semana. Ancelmo Gois, em sua coluna, nos informou outro dia que, mesmo com o tsunami conservador que varre o país, todos os ingressos para o desfile do Grupo Especial das escolas de samba, no domingo e na segunda, já foram vendidos. Nada mais belo do que o Sambódromo lotado em dia de carnaval. E, este ano, os espectadores poderão cantar, com as escolas, sambas de grande qualidade, uma safra de composições para ficar na história dos desfiles.

De minha parte, vou cantar com a Portela de meus amores o samba de enredo que diz: “No ventre há vida, novo amanhã, Irim Magé já pode ser feliz, transforma a dor na alegria de poder mudar o mundo”. Isso é muito mais bonito, serve muito mais para viver, do que o horror daqueles golden showers que andaram nos mostrando por aí.

O Globo, 17/02/2020