O espírito de Leonardo não perdeu um milímetro de sua juventude. Coincide com o sorriso de Mona Lisa, intenso e tangível, radiante e fugidio. Inovador. Leonardo institui uma abordagem ampla e integral do saber, sem fratura ou cicatriz, livre de importunas fronteiras e clivagens.
A cultura do Mais desvela a Alma do Mundo e ausculta seus batimentos cardíacos. Conhecimento ordenado mediante poderosa intuição.
Olhos agudos e partícipes. Equilíbrio da parte e do todo.
Sua obra encerra um misto de frescor e assombro. Ninguém foi mais longe. Nem se arriscou tanto. Ninguém viu com maior nitidez. Nem ousou colóquio mais vasto.
Leonardo transfigurou o presente para alcançar a intimidade do futuro, ao desenhá-lo, pressuroso, em seus cadernos.
Seu gênio não se restringe aos maquinismos que projetou, mas a um método plástico e rigoroso: a poética do conhecimento radial, que ultrapassa escafandros e máquinas voadoras, segundo uma leitura feliz, que não distingue arte e ciência, como intransitáveis mundos. É, antes, a busca de uma via transversal, de um conteúdo plástico e crescente.
Leonardo é membro da família de Platão, não tanto pelos instrumentos, ou pela forma de lidar com o mundo, mas pelo desejo do Todo, pelo adensamento das vozes, distintas e articuladas, enquanto experiência coral, na solidariedade dos fenômenos, na extensa rede que abrange as formas várias e as nuances do Todo.
Sublime, a correspondência entre micro e macrocosmo: desde a figura do homem de Vitrúvio, modelo universal, capaz de atingir causas secretas e análogas.
A herança leonardiana constitui jazida inesgotável. Não apenas aberta, generosa, como quem desafia, após meio milênio, os paradigmas atuais desidratados, que se dissolvem paulatinos na aurora do século novo. E que reclamam, afinal, um sentimento holístico, mais vasto e integrado, como princípio de entusiasmo inaugural.
Entusiasmo etimológico: “a mente do pintor assemelha-se à mente divina”, segundo Leonardo, assim como “a necessidade obriga a mente do pintor a transmutar-se na mente da natureza para interpretá-la”. A pintura é filosofia, corrigida pelo olhar, longe da selva de silogismos, que aborrecem Leonardo, assim como o desenho e as cores não bastam para desvendar a alma dos corpos e o movimento capaz de animá-los. A superfície não se esgota no olhar. Exige abordagem sutil capaz de penetrar a medula das coisas.
A técnica do sfumato rompe a barreira do mundo interno com o mundo externo. As mediações subjetivas da figura perdem a rija contenção de outrora, cujos semblantes irradiam alta dose de imprecisão, aura de mistério que aflora à superfície e compõe retratos deslumbrantes.
Se, para Leonardo, a poesia é pintura cega, a pintura, por sua vez, é poesia muda. O primado filosófico, sob as camadas multiformes da imagem (entre mímese e abstração), corresponde à pintura.
Leonardo ensaia uma poética da inquietação, defende a composição inculta, figura imprecisa, incompleta, sitiada por um conjunto de riscos sobrepostos. Rascunho incerto e visceral, quase um borrão dos mais variados pentimenti. E, no entanto, passada a tempestade, a superfície dissolve o labirinto e decreta uma paz inesperada, como se tudo resultasse de um mundo sem conflito, onde impera, serena e harmoniosa, a nostalgia do mais.
Folheio as páginas do livro De divina proportione, de Luca Pacioli, e os sólidos platônicos, cheios e vazios, ilustrados por Leonardo. Impossível não destacar o conjunto instigante que abarca as leituras de sua formação, de acordo com as listas nos códices de Madrid, e de outras leituras possíveis, transfinitas, conjunto que comprova a exuberância da Biblioteca Nacional.
Teria sido impossível não convocar a matemática atual para dialogar com o gênio visionário de Leonardo, além das questões, revisitadas, da seção áurea e da perspectiva, geral e aérea. Com o quinto postulado de Euclides, referente às paralelas, nascem as primeiras dissonâncias que levam às geometrias não euclidianas. Surgem aqui a sequência de Fibonacci, fluidos e fractais, a plasticidade intrínseca de padrões e algoritmos. A beleza, segundo G. Hardy, é a última prova da matemática.
Recordo o querido amigo Israel Pedrosa, que revisitou, no outono da vida, A Anunciação e A Batalha de Anghiari, com o approach de uma linguagem sua e pós-moderna; a espiral de Roberto Moriconi, ao dialogar com as elipses vincianas; e o fabuloso passeio pela Grécia, de Wesley Duke Lee, no helicóptero de Leonardo.
Celebrar os 500 anos da morte de Leonardo é a maneira necessária e incontornável de fazer a defesa de uma cultura poética e ecumênica.