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Alexandria e a esquerda global

 

A recém-terminada Conferência de Alexandria, organizada pela Academia da Latinidade, começa já a ter as suas repercussões, tanto no debate de seu apelo no Parlamento Europeu entre nós, graças ao inédito acompanhamento pela imprensa, nos rumos da busca mais ampla do que seja uma esquerda no mundo global. Ou melhor, no limite mesmo em que se configura a hegemonia, e o confrontá-la, ainda, com uma alternativa, antes do fechamento do novo sistema. Não estamos mais no bom tempo da dominação, por sua vez herdeira do velho colonialismo, seus epítetos, suas denúncias, mas diante de um complexo inédito de condicionamentos coletivos, em que se afirma rapidamente no pós 11 de setembro a superpotência transformada em reitora das cruzadas do Ocidente.


O novo domínio não é a exasperação de meras dependências internacionais, como herdamos dos imperialismos de mercado e nos habituamos a vê-los, ainda no fim do século XX, com divisórias-limite de poderes e contra poderes de nível equilibrado, dando-nos a guerra fria. Não é sem razão que no último biênio o Governo Bush instalou na Casa Branca o ambicioso Departamento de Cibernética Social, a espelhar no mais sofisticado dos apuros científicos e no apoio do Vale do Silicone, o novo empenho de controle comportamental amplíssimo suposto por um mundo global que entrou na guerra da sobrevida e na sociedade do risco total - envolvido pelo conflito terrorista.


A diferença se torna necessariamente subversiva, a suspeita generalizada paralisa a liberdade e reacelera novas rotinas que inauguram a civilização do medo. Não sem razão Alexandria superpôs às primeiras sintomáticas da hegemonia a pergunta - como a fez Suzan Burk-Morss - de se pode haver no quadro de contradições diversas e assincronias de um universo ameaçado como um todo, uma verdadeira esquerda global. O que sustenta a indagação é a envergadura máxima com que a hegemonia irrompeu sobre o quadro do velho e conhecido regime de confrontos e contradições sociais. A polarização acicatada pelo terrorismo abre-se sobre o abismo de um mundo que perde o pé, sobre a continuidade mesma das tensões imediatas.


Tem toda razão entre nós a nova esquerda do PT através de vozes como a de Chico Alencar, a indagar por onde deve começar essa esquerda global, premido pela força do descortino e do horizonte aberto pela sucessão de reportagens, da cobertura direta e atentíssima de Merval Pereira ao encontro, na Biblioteca de Alexandria. Buscar o caminho crítico de dentro do PT, e da nova situação limite da única esquerda, ainda nacional e viável, começa por exibir-se na obsolescência de propostas de alternativa que ainda pensem na velha dominação imperial.


Não é pelo provecto debate, do recuperar-se a estatização, ou avançar-se no processo crítico das privatizações, ou repensar as condições de produtividade dos modelos, diante das prioridades de emprego ou de salvação do balanço externo de pagamentos que avança no vazio quase abissal em que se alterou a própria idéia da confrontação, entonteceu-se a alternativa e as relações entre conjuntura e projeto histórico Chico Alencar e, ao que parece, os seus companheiros mais aguerridos, atentam a esta inflexão primeira, de que depende a própria vigência do PT no poder, para além das perplexidades pobres de uma afirmação nacional, que mantém o extraordinário país de Lula, e da mobilização exclusiva do presidente. Não é pela crítica a Palocci ou ao “agro business”, ou à taxa de juros que se chega lá. A encontrar-se o respiro, reclamado pela guinada da última eleição, não há como fugir da busca da mirada que a aceleração das cibernéticas bushianas - e a viabilidade de sua continuação pós 4 de novembro próximo - impõe ao futuro real do pós 11 de setembro, por sobre os pensamentos orgânicos de esquerda e de suas metodologias de retomada do poder, na crença de que, afinal, cabe à racionalidade a última palavra sobre o futuro.


É num quadro de “estado de necessidade” dialética que essa esquerda, na prática criadora do pessimismo, quer municiar os escaleres para sobrenadar a hegemonia, e, como conclamação básica, trocar o confronto econômico por lances fundadores de condutas políticas e culturais. Há que defrontar o que passa a ser o seu simulacro dentro da ordem envolvente, lutando pelo autêntico contra o moderno; pelo nacional contra o global; pelos direitos humanos, contra os imperativos da segurança universal; pela diferença como raiz da pessoa e sua liberdade.


O que sobretudo vale, agora, no governo Lula e lhe garante uma voz neste cenário depredadíssimo de alternativas é a força de seu perfil externo, e de como repegou e imantou confrontos deixados a meio caminho pelo socialismo obsoleto, tal como ainda demonstrado na última Internacional, das boas viúvas do quanto era bom ainda, há uma década, confrontar a ordem estabelecida. As lideranças imediatas ganhas pelo Brasil no emperro da Alca, ou na derrota do poder hegemônico frente à OMC são alguns dos avanços inesperados, pelos quais se forçam brechas sobre o próprio sistema que se fecha e que no jogo do que ainda não se engoliu deixa do lado de cá todo o aparelho das Nações Unidas como resistência à organização racional das dimensões internacionais do nosso tempo. E, a seu lado, os países que – salientou tão bem Craig Calhoun - tem ainda o empuxe nacional para se agarrar na ladeira da nova modelização, e seus simulacros. Da democracia aos direitos humanos; às injustiças sociais; às expectativas do Brave New World que venceu toda escatologia utópica de Huxley ou Orwell, para o mundo em luta perene, intacto e idêntico a si mesmo, frente à ameaça sem descanso do terrorismo.


A pobreza alarmante dos debates de futuro do PT no poder, sua inesperada fragilidade imunológica à bactéria da corrupção; sua procura do timing cravado entre sedimentar-se e relançar-se, não impedem, graças à própria práxis geral da vitória de outubro de 2002, de saber já por onde não ir ao futuro. E se apropriar do que conquistou lá fora para nos deixar como um começo de diferença e de logo a ter a amplitude do confronto com a hegemonia, para soltar-se do miúdo, do sôfrego, do terrivelmente obsoleto que pode ser a fé de ofício de uma esquerda demissionária, no formato que lhe pede o mundo do pós 11 de setembro e seus focos, frente ao sistema do medo sem retorno.


Jornal do Commercio ( RJ) 7/5/2004