Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Além das Grades

Além das Grades

 

Numa chuvosa manhã de agosto, visitei a escola estadual Agenor de Oliveira Cartola. Situada no presídio Esmeraldino Bandeira, pode-se dizer que foi erguida pelas mãos de seus alunos, como num motivo libertário, a partir do tijolo ecológico fabricado na prisão. Quase um destino! Vejo os professores Ralf e Evaldo, o primeiro há poucos meses na escola, e o segundo, com mais de vinte anos. Tomamos  café na sala dos professores. E logo me dou conta de que ambos não perderam a esperança. Ralf é professor de arte. Leva seus alunos (não detentos, atenção!) a muitas viagens no universo da cor. Mostra-me um trabalho de origami, de oriental delicadeza, feito em sala. O professor Evaldo ensina como a História se entrelaça com a biografia de seus alunos, enquanto sua colega, Miriam, diz ter encontrado na Agenor de Oliveira a estratégia para evitar que meninos de uma certa escola da periferia façam escolhas perigosas. Professores com grande energia, conscientes do papel que exercem intramuros. 
  
Dirijo aos alunos algumas palavras de amizade e encorajamento. Não sei o que fizeram, nem eles tampouco imaginam o que fiz. Conversamos de igual para igual, porque estamos do mesmo lado. Não há mais que um lado. Tratamos de algumas leituras recentes. Olhos atentos, abertos, a conversa prospera com sinais quase fraternos. E por que não cantamos? Formou-se logo um belo coral. Metade da sala canta “Luar do Sertão”, ao passo que a outra, responde com “Felicidade”, de Lupicínio Rodrigues. Custa reunir as duas partes, mas o resultado, a capela, parece outro, e paciente, origami sonoro. 

A conversa adquire uma nova temperatura: crime e castigo, a desigualdade e o “x” da questão: onde   termina a pena, onde começa a liberdade? De repente, um estrangeiro tece uma observação oportuna. Pergunto de onde vem e responde como se viesse de um país inabordável. Dirijo-me na sua língua e pergunto pela cidade, que conheço, e um famoso poeta daquela terra distante. Volto, depois, ao português. Ele se levanta, com um estranho brilho nos olhos, caminha na minha direção, abraça-me e logo me beija no rosto. Talvez porque nos reconhecemos na sua língua-mãe, aqui, justamente, no deserto do cárcere, onde somos todos órfãos. E seguem novos depoimentos, respeitosos, mas em alta voltagem. 

Eis o lugar essencial da escola no cárcere. Não se trata de luxo, mas de imperiosa necessidade. Urge ampliar os centros de ensino, em vez de insistir na redução da maioridade penal, este, sim, um crime inominável, de excessiva criminalização, como quem rouba o futuro. Precisamos de uma escola integral, dentro e fora das grades, com amplo número de matrículas, pelo Brasil afora.  Não há, nem pode haver outra forma de inclusão. Abraçamo-nos, alunos e professores, enquanto seguíamos para a pequena biblioteca. Trago nos lábios  a última frase do filme “César deve Morrer” dos irmãos Taviani: “Depois que descobri a arte, esta cela transformou-se num cárcere”.

O Globo, 03/09/2014