Alberto da Costa e Silva não devia morrer, não podia morrer. Era uma hipótese improvável. A multa seria muito pesada. E tudo mais, desnecessário. Tenho certeza de que não conseguiu. Uma obra límpida e altiva, rebelde e inovadora, vasta e fascinante não se desfaz. É patrimônio da cultura nacional. Ele tornou-se um maestro, a reger os instrumentos de sua orquestra interior, poema e história, ensaio e memória, cujo lá fundamental é indubitavelmente a poesia.
Ninguém se engane. Alberto foi sobretudo poeta, ao longo de sua vida, em tudo o que fez ou deixou de fazer. Dotado de profunda intuição, viu mais longe, de forma nítida e sutil, o pálido semblante do futuro. Poesia despojada, espaço afetivo, sentidíssimo: pão sobre a mesa, cartas e retratos, que povoam seus poemas. E que resgatam as coisas que se perdem, como nos versos “Usa o meu coração, se o teu já tens gasto,” verdadeiro tesouro da língua portuguesa.
Seu livro de memórias “Espelho do príncipe” é um dos mais bem-sucedidos capítulos sobre a infância, sempre em terceira pessoa, entre Jorge de Lima e Graciliano, em contraponto. E com Bandeira, com igual, serena humildade.
Porta semiaberta, o livro todo, cuja casa e quintal pressentimos, como se fosse uma arca disposta ao Dilúvio: tão implicados, homens e animais. Complementares, solidários. Alberto vive naquelas páginas. E não perde o direito de sonhar.
Alberto estudou a herança plural de nossa cultura. Olhar intenso para a África. E dentro dela nos reconheceu. Propôs uma nova leitura do Atlântico: deixou de ser oceano e fez-se rio. Criou uma poética do diálogo para alcançar o centro da Diáspora. E reuniu as margens que pareciam distantes.
Foi seu amigo o rei de Ifé. Veio ao Brasil, enquanto rei e sacerdote, para acalmar as almas dos escravos: um belo e contundente ritual.
Alberto deu início a uma leitura participativa dos laços vigorosos que nos prendem. Que são também os laços que libertam. Prendem e libertam. Ele apostou na diversidade. Combateu o racismo. Antecipou-se a uma agenda de justiça e igualdade. Assim como a lei Afonso Arinos.
Falava horas a fio de música e pintura, de seus amigos de África e Portugal. E quando ganhou o Prêmio Camões, festejado por todos, chegou a duvidar do próprio mérito.
A geração de Alberto “buscou a santidade”. Disse uma vez citando Léon Bloy. Tornou-se, vida afora, agnóstico ou ateu. Só mesmo quando ouvia a Paixão segundo Mateus, de Bach, pensava na hipótese de Deus.
Jamais passou de hipótese.
Se Deus ou Bach existirem, em alguma parte do Universo, Alberto dará testemunho pleno: de uma vida luminosa, fraterna e solidária.
Marco Lucchesi é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL)