Semana passada, na onda provocada pela charge que envolvia Maomé e o terrorismo, escrevi uma crônica sobre a liberdade de expressão -liberdade fartamente defendida por aqueles que consideram a mídia como valor absoluto, tudo o mais sendo relativo, inclusive a verdade e as verdades. Disse, na ocasião, que liberdade de expressão não é liberdade de opinião, essa, sim, valor próximo de um dos raros absolutos inerentes ao ser humano.
O que li e ouvi por aí foi uma enxurrada de confusões e até mesmo de besteiras, juntando no mesmo saco a "expressão" - que é uma coisa - e a "opinião", que é outra.
Não vou gastar o escasso latim nem o espaço, que também é curto, para voltar ao tema. Vou apenas imaginar duas hipóteses, ambas insuportáveis a qualquer ser humano com um mínimo de decência e bom gosto.
Suponhamos que apareçam duas charges, não importa em que veículo da mídia (imprensa, rádio, TV ou internet). Na primeira, a jovem judia (Anne Frank) está de costas, ajoelhada, fazendo sexo oral em Hitler, que uiva de prazer.
Eu não riria desta charge, como não achei graça na charge de Maomé com a bomba de terrorista na cabeça. Acredito que o Estado de Israel teria aquilo que o direito internacional chama de "casus belli" - um caso para qualquer país ir à guerra contra outro. Inclusive com direito a usar bomba atômica.
Mudando de cenário e personagens, na segunda charge, o papa gloriosamente reinante estaria de cócoras, paramentado, sendo sodomizado por George W. Bush com uniforme do Exército que está ocupando o Iraque. Ou com o macacão de operário no ramo do petróleo ao qual pertence a sua família.
O mau gosto é tal e tamanho que nem daria proveito a um anti-semita fanático ou um anticatólico radical. A liberdade de expressão é valor relativo e, em alguns casos, coloca-se a serviço da ignorância ou da burrice.
Folha de São Paulo (São Paulo) 15/2/2006